Na transmissão de vírus, um morcego não é mais perigoso que uma galinha, diz biólogo e docente da UNILA

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Hermes Schmitz analisa as origens do coronavírus e as condições para o surgimento de novas pandemias

“Não acho que seja mais perigoso um morcego do que uma galinha”, diz o docente da UNILA Hermes Schmitz ao analisar as origens do novo coronavírus. Ele explica que a transmissão de vírus independe do animal. “Não é porque é exótico que a probabilidade é maior. Na história das pandemias, muitas doenças foram transmitidas por animais que a nossa civilização ocidental não considera exóticos.”

O sequenciamento do vírus Sars-Cov-2 aponta semelhanças com vírus encontrados no morcego ou no pangolim, um mamífero que tem seu habitat em países asiáticos. “O que temos até o momento, provavelmente, envolve um ou os dois animais, com a possibilidade de ter passado do morcego para o pangolim e o pangolim servir como um intermediário até os humanos”, comenta. “Sabe-se de longa data, que humanos e animais trocam vírus regularmente. Essa é a origem da maior parte das doenças infecciosas”, pondera.

Hermes Schimtz, docente dos cursos de graduação em Ciências Biológicas – Ecologia e Biodiversidade e em Ciências da Natureza – Biologia, Física e Química, é o terceiro entrevistado da nova temporada da websérie Fator Ciência (confira a entrevista na íntegra em https://bit.ly/covid-origem). Doutor em genética e biologia molecular, Schmitz também é docente no Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Neotropical.

Sobre as questões culturais que envolvem a origem da pandemia, Schimtz diz que “a cultura exótica é sempre a do outro”. Segundo ele, embora o que se sabe até agora aponte para o morcego ou o pangolim como transmissores do coronavírus, não há fundamento dizer que a pandemia começou com “uma sopa de morcego”. “Ainda não sabemos [como começou]. É muito difícil um vírus ser transmitido diretamente pela alimentação. Não sobreviveria ao cozimento. É mais provável que o vírus tenha sido transmitido pelo contado do ser humano ou com o animal vivo ou com suas secreções ou com a carne fresca”, analisa.

Ele pondera que, embora não se possa olhar com preconceito hábitos alimentares diversos, não é possível negligenciar o fato de a China ter um contexto sociocultural que pode ser facilitador da transmissão de novas doenças. O problema não estaria, então, necessariamente, na cultura alimentar, mas em como o alimento chega ao ser humano. Os primeiros casos de Covid-19 estão ligados a mercados onde são vendidos animais vivos ou recém-abatidos para alimentação ou uso na medicina tradicional. Nesses espaços, muitas vezes, são colocados lado a lado, aglomerados, “animais que jamais se encontrariam na natureza” e onde há também uma grande circulação de pessoas. “Essas condições facilitam a disseminação de doenças emergentes. No entanto, chamo a atenção que essas condições não são exclusivas da China. A gente encontra condições muito semelhantes em vários outros lugares do mundo e há outros contextos que também facilitam essa disseminação.”

O docente pontua que a velocidade das alterações ambientais trazem condições facilitadoras para a transmissão de vírus de animais para humanos. “Essas alterações ambientais muito rápidas, o desmatamento, a ampliação de campos agrícolas, a urbanização de regiões selvagens criam um ambiente facilitador da emergência de doenças infeciosas novas”, afirma. “Esse é um cenário que vai muito além da China. Dá para descrever quase perfeitamente o que está acontecendo na Amazônia, no cerrado, e em vários ecossistemas no Brasil e outras partes do mundo.”

Outra condição, estaria na forma de criação de animais adotada em vários países e que se caracterizam por um “extremo confinamento”. “É o caso clássico de uma granja de frangos. Milhões de frangos em espaço muito exíguo, em contato muito próximo, e com fezes e secreções, às vezes animais mortos, o que é uma receita perfeita para a disseminação de vírus muito rápida entre eles. Inclusive, isso não é especulação, é realidade. Já tivemos vários exemplos recentes de disseminação de doenças em frangos e outros animais confinados que necessitaram, às vezes, ser sacrificados e incinerados. E não apenas na China, mas também na Europa e Estados Unidos”, comenta.

Loteria

Nem todos os vírus presentes nos animais serão ameaça para o ser humano. “Temos novos vírus surgindo a todo momento, por mutações aleatórias”, explica. “A evolução não tem como parar. Como todos os seres vivos, patogênicos ou não, também os vírus, todos estão sofrendo processo de mutação aleatório, que é contínuo.” Os vírus, em especial, explica Schimtz, têm ciclos de replicação e taxa de mutação muito rápidos.

Segundo ele, grande parte dessas mutações pode não trazer nenhum efeito, mas, no processo de seleção natural, ganha o que tiver mais condições de sobrevivência. “Uma pequena parte dessas mutações vai produzir um efeito que afete a viabilidade do vírus naquele hospedeiro, que lhe confira uma vantagem, uma maior eficiência, uma maior adaptação à fisiologia do organismo que ele infecta, ao sistema imunológico, ou muito importante, na possibilidade de transmissão de um organismo para outro.”

“É uma loteria”, compara. “A probabilidade [de que a transmissão do vírus] leve a uma doença, a uma epidemia, é baixíssima, mas temos muitas pessoas e muitos animais, muitos contatos. Mesmo que a probabilidade seja muito baixa, havendo muitas oportunidades, em algum lugar isso vai acontecer. Essa é a parte que é inevitável”.

O que está na possibilidade de ação, destaca o docente, é evitar a disseminação dessas doenças emergentes para uma quantidade elevada da população e o consequente estabelecimento de uma epidemia ou pandemia.

Ciência

Schimtz critica os que negam a ciência ou diminuem a importância da pesquisa científica, como tem sido comum. “Ciência virou quase um BBB. Está todo mundo discutindo nas redes sociais. Cada um tem seu remédio preferido. A impressão que eu tenho é que as pessoas não querem ciência, querem milagre”, adverte. “Ciência não pode dar cura de uma hora pra outra. Ciência é um processo contínuo, ciência demora.”

Para ele, a pandemia de Covid-19, pode ser uma oportunidade para chamar a atenção sobre o perigo que é a negação da ciência. “Existe um mito de que a ciência é dona da verdade. A gente não tem verdades absolutas. Está sempre rediscutindo aquilo que acha que sabe. E não é briga de opinião. Nossos desejos, vontades, ideologias não influenciam em absolutamente nada em como a natureza funciona. A natureza despreza completamente a nossa opinião e se impõem. Ela sempre vai se impor.”

Ele lembra que ciência vem alertando sobre o aparecimento de pandemias como a Covid-19. E também para o reaparecimento do sarampo, tuberculose e febre amarela. “Uma das características que eu mais gosto na ciência é a de previsão. Essas previsões que se concretizam são dos principais aspectos que mostram que a ciência de fato funciona. Não só para entender o presente, mas para saber como seria o futuro.”

A série

A websérie Fator Ciência estreou no dia 8 de maio. Por conta do período de isolamento social, o programa está em novo formato e foi gravado a distância, por meio da plataforma Zoom. Os capítulos serão divulgados sempre às sextas-feiras, no canal da UNILA no YouTube e também em formato podcast no Spotify.

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