#Foz106anos: O encontro com a onça do diabo

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Por Adilson Borges

A história que eu vou contar, se passou nos idos de 1960, quando tinha 16 anos e a região da fronteira ainda era um grande sertão verde. Meu tio Getúlio sempre me levava para pescar no rio Iguaçu, lá na barra do rio Tamanduá, onde tinha um pequeno porto com uma tapera, de sociedade com o sêo Nóca, um pescador, neto de escravos.

Certa vez ele me levou ao barraco já na boquinha da noite. A intenção era pescarmos bagre e piapará, peixes de couros que só são fisgados à noite. O caminho para chegar até a barranca era uma trilha qua atravessa uma floresta e acabava numa clareira onde estava o barraco.

Ao chegarmos, estranhamos o silêncio, quebrado por latidos do Sultão, um cão perdigueiro, amarrado perto de um ipê. Getúlio também estranhou a falta de uma fogueira, necessária para iluminar o local e afastar bichos. Ao entrar no barraco mal iluminado por uma lamparina à querosene, encontramos Nóca deitado na cama gemendo de dor.

Ele disse:

— Compadre Getúlio como vai? E você menino está cada vez maior, quase virando um homem.

— Que aconteceu? Quem te atacou? Perguntou Getúlio.

— Nessa madrugada, quando eu prepara para entrar no caíco para revistar as redes de pesca, uma onça de quase 20 palmos de largura, e quase me matou. Consegui escapar e voltei para o barraco mas a danada continua rodiando as redondeza pra tentar me pegar.

Nóca levantou um lençol velho que cobria o seu corpo e mostrou a unhada da onça, que pegava toda a coxa. O ferimento fedia sangue e carne apodrecida.

— Vamos levar você para cidade pela manhã, mas antes temos que tratar essa perna antes que vire uma ferida braba. Disse meu tio.

Ele providenciou uma fogueira em frente ao barraco e amarrou o cachorro num toco perto da fogueira. Ferveu um pouco de água num fogão velho e começou a limpar a ferida do velho negro. Depois colocou algumas folhas de mamona embebidos em cachaça e banha de capivara. O velho gemeu um pouco com a colocação do curativo mas depois já começava dar sinais de melhora.

O clima era tenso no local, sentia a respiração pesada de tio Getúlio, típico de quando estava nervoso e isso também me deixava nervoso. Na verdade estava com muito medo.

Já era tarde quando ele sentou num banco em volta da fogueira, acendeu um palheiro e começou a manusear uma velha flobé, verificando se havia balas.

Um pouco depois, ouvimos do outro lado do rio, na Argentina os guincho de macacos e o barulho de algum bicho grande cair na água.

— É a onça atrás de um pardo! Pode vir que tô preparado! Gritou Getúlio, pigarreando uns palavrões e levantando para buscar a chaleira dentro do barraco para fazer chimarrão. Fiquei sozinho sentado lá fora, botando umas espigas de milho para assar nas brasas da fogueira. Foi quando Sultão começou a rosnar acuando para um canto do mato, ao lado do barraco onde não se via nada, por causa da escuridão. Comecei a olhar para onde o cão estava acuando e comecei a ver dois pontinhos brilhantes saindo da escuridão. Era a onça vindo em minha direção. Pressentindo o perigo, Getúlio largou a chaleira e veio correndo para tentar pegar a espingarda, mas não deu tempo. A onça passou quase do meu lado indo direto no cão, carregando com uma bocada o pobre animal com coleira e tudo para dentro do mato, sem dar chance a nenhuma reação.

Assustado, fiquei paralisado, em estado de choque, enquanto Getúlio pegou a flobé e disparou um tiro a esmo, provocando um estrondo enorme.

— Vamos fechar o barraco e esperar amanhecer pra ir atrás da fera! Disse meu tio, fechando a porta com uma tranca de madeira.

— Essa onça, acredito eu é a criação do Demo! Anhá Yaguareté, é como os paraguaios chamam ela e que significa onça do diabo em guarani. Ficou braba assim depois que uns caçadores e encurralaram mataram um dos seus filhotes. Tempo atrás, a xiruzada que vivem caçando por essas bandas, acharam lá no Remanso das Antas, a carcaça de um dos companheiros que se perdeu no meio mata num dia de chuva forte! Disse o velho.

Na madrugada, ouvimos os grunhidos da bicha e o barulho do afiar de suas unhas numa árvore próxima. Um cheiro forte de carne e sangue, fezes de animal entrou pelos buracos do barraco. Aquilo parecia uma provocação, como se tivesse dizendo: Vão embora do meu território.

Pela manhã, tio Getúlio pegou a espingarda e colocou as munições e pedaço de carne seca no embornal e começou a ir atrás do rastro da onça. A uns 300 metros do barraco, ele encontrou em cima de uma árvore os restos do pobre cachorro. Os rastros acabavam na beira do rio, onde do outro devia ser sua morada. Ele desistiu da empreitada e voltou para o barraco, desolado. Improvisamos uma maca e levamos o velho Nóca para a cidade, para se restabelecer e evitar novos ataques da onça.

Passado alguns anos, ouvimos dos caçadores a façanha de uma onça que metia medo na região e que nunca conseguiram pegá-la. Simplesmente ela desapareceu e isso ajudou a criar uma lenda em torno dela.

Hoje sei que os tempos são outros e as poucas onças que conseguiram sobreviver aos caçadores, estão no interior do Parque Nacional do Iguaçu.

Adilson Borges Lago é ambientalista , presidente da Adeafi (Associação de Defesa e Educação Ambiental de Foz do Iguaçu)

Blog resgata memórias de Foz do Iguaçu

A série #Foz106anos marca o aniversário do município, nesta quarta-feira (10 de junho) com o resgate de uma série de artigos, contos e reportagens que seriam publicados na 4 ª edição da revista Cabeza, da Aculfi, em 2004. Abaixo links dos demais posts

Um voo a um passado bem próximo

Cabeza de Vaca vale o resgate

O encontro com a onça do diabo

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