Por causa de um “voto por omissão”, ex-deputado fica preso e morre!

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Talvez possamos aprender com o erro. Peço que me acompanhem.

Por Lenio Luiz Streck

Eu havia escrito aqui, endossando posição da CFOAB, que o STF estava cometendo inconstitucionalidade ao computar abstenção no plenário virtual como voto de acordo com o relator.

Morre ex-deputado Nelson Meurer

Eu disse: O que um cidadão pensaria se, em um pedido seu envolvendo, por exemplo, a liberdade, apenas 2, 3 ou 4, da composição de 5 ministros, votassem no plenário virtual e que os votos não proferidos contassem como se fossem concordes com o relator?

Pois foi o que aconteceu com o ex-Deputado Meurer, de 78 anos, morto pela Covid depois de ter sido negado a ele o direito a prisão domiciliar. Além de tudo, operado do coração. E sabem por quê? Por causa do voto não proferido pela Ministra Carmen Lucia, que foi computado como sendo contra o apenado.

Em detalhes: o resultado do plenário virtual foi 2×2 (segunda-turma), com abstenção de voto da Ministra Carmen. Gilmar e Lewandowski votaram a favor. Fachin e Celso, contra. Só que, conforme a regra do art. 2º, § 3º, da Resolução 642/2019, o requerente perdeu, porque a abstenção de Carmen contou a favor do voto do relator Fachin, quem votou contra o pedido. Assim, por incrível que pareça, o relator pode ter até três votos. No mundo todo, deverá ser objeto de estudos. Um juiz, dois ou três votos!

De todo modo, tratando de matéria de liberdade, o empate deveria dar vitória ao requerente, conforme já se sabe desde o julgamento de Orestes, na peça As Eumênidas, de Ésquilo (Trilogia Oresteia).

Por isso, nem precisaria ser computado o “voto” da ministra. Esse é o imbróglio. Dois votos a favor e dois contra já dariam vitória ao idoso ex-deputado se ele tivesse sido julgado pela juíza Palas Athena, da mitologia grega. Ou seja, se ele tivesse sido julgado na Grécia antiga, o empate o favoreceria.

Lamentavelmente não é apenas esse o problema dos plenários virtuais. Quantas pessoas foram prejudicadas por “votos por omissão”? Quantos votos por omissão foram computados contra os réus? Uma pergunta para os pesquisadores.

Há muita coisa ainda a alterar. Como o Brasil precisa mudar. Nestes tempos de pandemia, os atropelos se multiplicam. A última reunião da Comissão de Estudos Constitucionais tratou disso. Há juízes e desembargadores que não aceitam despachar com o advogado virtualmente. Isso para dizer o menos.

E há ministro do STJ que diz que não ouve sustentação virtual. Como advogar? Esse caso do “voto por omissão” está corrigido. Mas, cá para nós, ficou uma nódoa. Afinal, aceitar que em 2020 a Suprema Corte (e existe isso em outros tribunais) institucionalizou o “voto por omissão”? Será que ninguém se deu conta disso, já no início?

Tenho estado na linha de frente na defesa do STF. Como já falei no plenário — físico — quando do julgamento da ADC 44, sou amigo da Corte. Inimigos ela tem de sobra. Fui o primeiro a dizer que o STF estava sendo vítima de Contempt of Court. Tese muito bem albergada pelo STF no caso do inquérito das fake news, em que o STF acertou. E há inúmeros textos meus em defesa da Suprema Corte nos últimos anos. O grupo Prerrogativas, do qual faço parte, tem se notabilizado pela defesa institucional da Suprema Corte. E é papel da doutrina dizer do acerto e alertar para o erro. Como está no alerta do livro Die unbegrenzte Auslegung (Uma Interpretação não limitada-constrangida), de Bernd Rüthers.

Mas seria bom que os Ministros tivessem mais empatia e se colocassem, por vezes, no lugar das partes e no lugar dos advogados. O caso esse, em que resultou a morte do ex-deputado, pode servir de sinal de alerta.

Isto é: precisamos saber que tratamos de gente, de pessoas. Não são algoritmos, nesta fase pós-moderna em que tudo é eficiência, robôs, etc. De novo: como que um voto-não-proferido pode ser computado a favor do relator? Um “não voto” vira um voto? Um voto que pode, por vezes, ser a destruição de uma carreira, de uma vida, da perda de patrimônio, da honra, de direitos?

Fui, por 28 anos, membro do Ministério Público e é de conhecimento público as minhas relações respeitosas com os advogados. Eu tinha empatia. Talvez porque tenha sido advogado antes de ingressar no MP. E sofrido na carne. A dor ensina a gemer. Do couro saem as correias.

Tenho visto tanta coisa nestes poucos anos de advocacia, depois de meu jubilamento. Já disse para minha filha e meu genro, ambos advogados: por favor, se depender do vovô aqui, esforçar-me-ei para que meus dois netos não sejam advogados. Ninguém aguenta fazer Stoik Mujic todos os dias.

Tenho conversado com tantos advogados nesta era das lives. Que me contam tantas coisas. Do drama cotidiano de advogar. Meus amigos me contam coisas. Leio tantas coisas que denunciam essa verdadeira jusdramatologia. Advogar deveria ser profissão de risco. E receber insalubridade.

Os casos do rapaz que morreu da Covid (esse é do do âmbito do STJ) e do ex-deputado Meurer apenas confirmam (minh)as angústias. O que me contam todos os dias enruga o raciocínio. E quando me dou conta de que um recurso para os tribunais superiores tem menos de 1% de chance de “passar”, fico pensando se os médicos dissessem ao utente: você tem menos de 1% de chance de sobreviver na cirurgia.

Angústia é aquela dor que não se sabe dizer e definir… Esta velha angústia, como diria F. Pessoa, por seu heterônimo Álvaro de Campos.

Temos de ter cuidado com as armadilhas da eficiência. Sedutora, acelera. Mas desumaniza. E pode matar.

O artigo foi publicado originalmente no site Conjur

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