Por meio da arte que descobriu quando era criança, Ary de Souza teve a própria vida transformada e passou as mesmas lições para milhares de alunos
Em meados da década de 1970, enquanto a população de Foz do Iguaçu permanecia impressionada com a construção da Itaipu Binacional, o jovem Ary de Souza, aos dez anos, estava alheio a tudo o que acontecia no canteiro de obras. Para ele, o que mais chamava a atenção era a mistura de ritmo e movimento trazida por alguns dos barrageiros que trabalhavam na obra.
A curiosidade típica de criança o levou a descobrir o que era aquilo que o encantava. Assim conheceu o mundo da capoeira. Depois de 40 anos, o pequeno tornou-se uma referência: o mestre Ary – entrevistado da vez na série Artistas do Iguaçu.
Por meio da capoeira, viu a própria vida ser transformada para melhor a partir do conhecimento que aprendeu com os mestres durante a infância. Os ideais que o seguiram desde então mudaram também a vida de outras crianças da cidade.
Uma construção muito além do canteiro
O ano era 1974, quando Ary de Souza via chegar a Foz do Iguaçu pessoas de todas as idades, raças e culturas. Acostumado a brincar nas ruas com os amigos, ele via sempre bem perto de casa um bar, onde era comum ter um grupo de homens jogando capoeira.
“Na época eu não tinha muita noção do que era , mas assim que vi, me apaixonei. Mesmo sem saber como fazer, eu e meus amigos brincávamos de capoeira na rua, todos sem nenhuma técnica, só pulando na rua nos divertindo”, conta.
Não tínhamos nenhum professor, até que um dia o famoso mestre ‘Bombeiro’, que era funcionário da Itaipu e capoeirista do grupo Muzenza, apareceu na rua onde estávamos e nos mostrou o que era a verdadeira capoeira”, lembra Ary.
A partir daquele momento, a capoeira passou a ter influência direta na vida de Ary. Em 1976, durante um encontro de lutas, conheceu seu segundo mestre, Domingos. “Ele apareceu no palco sozinho, com um berimbau, e começou a contar toda a história da capoeira e isso me encantou”.
Não teve dúvidas: abordou Domingos e pediu que fosse seu professor. “No dia seguinte eu fui, de tão interessado que eu estava. Ele morava no Porto Meira e eu no Centro, mas nem me importei com a distância, pois queria muito aprender”.
De aprendiz a mestre
Ary foi o primeiro aluno do mestre Domingos, mas logo teve a companhia de muitos outros meninos. O pequeno grupo de 20 alunos que se reunia no quintal do mestre transformou-se em uma grande equipe com mais de 200 pessoas após começar a ensinar no Centro Comunitário do Profilurb 1.
Após alguns anos de aula, Domingos precisou ir embora de Foz. Ary então deixou de praticar a capoeira por algum tempo, e ganhava a vida engraxando sapatos pela cidade. Numa das andanças do trabalho, viu uma academia e decidiu pedir para participar. Era ali que conheceria seu novo mentor, o mestre Nicanor Amarantes.
“O mestre Nicanor era a pessoa que eu precisava naquele momento. Meu pai e a minha mãe eram alcoólatras e foi ele quem me instruiu na adolescência, me ensinou a disciplina e salvou a minha vida com a capoeira. Com ele comecei a participar de competições, viajei e aprendi muito”.
Antes de se tornar professor, o ainda aluno Ary teve o auxílio de outros mestres durante a formação. Uma das lembranças vem do Mestre Joel, que o acolheu quando se mudou para São Paulo.
“Cheguei a São Paulo e logo o mestre Joel me incluiu na família. Eu morava e treinava junto com os cinco filhos dele, pessoas que continuam muito próximas a mim até hoje e eu tenho como grandes irmãos por conta dessa gratidão e apoio. Foi ali que eu perdi o medo e me firmei como guerreiro, caindo e apanhando, mas aprendendo”.
Hora de ensinar
Aos 20 anos, foi a vez de começar a jornada como professor e repassar todo o significado da arte. Ary lembra que seu principal público eram jovens como ele, de origem humilde, marginalizados e que se encontravam na democrática roda de capoeira.
“Tínhamos ali engraxates, cuidadores de carro, flanelinhas, enfim, a profissão não importava. Queríamos aqueles jovens ali, aprendendo tudo o que eu aprendi e tendo disciplina para a vida. Eles também me ensinavam e eu era motivado a buscar mais conhecimento, subir o nível das aulas e me formar em patamares mais altos na capoeira”.
Durante algum tempo, o mestre conta que se tornou difícil conciliar a capoeira com a vida pessoal, principalmente por conta do retorno financeiro. Grande parte dos trabalhos eram voluntários e, apesar de receber uma bolsa da Fundação Cultural à época, ainda não era suficiente.
“O começo não foi nada fácil em muitos aspectos, comecei com o contramestre GG, mas por alguns problemas não foi possível continuar. Foi assim que surgiu o mestre Luiz, do Karatê Shotokan, que cedeu a academia dele para eu realizar as aulas. Com o apoio de outras pessoas, como o mestre Bené, que me auxiliou por 6 anos, tudo foi se encaixando”.
Aprendizes que seguiram os passos
Ary começou também a dar aulas em escolas e, com esse contato mais próximo, foi possível formar um grupo de atletas profissionais, montando uma equipe forte para disputar grandes campeonatos. Entre esses prodígios, estava Flávio Dhein, bicampeão mundial de capoeira quando ainda era aluno em Foz.
O primeiro contato dele com a capoeira foi quando criança, aos 9 anos. Hoje, aos 36, é contramestre e vive na Espanha há mais de 15 anos.
Flávio tornou-se professor, levando a arte brasileira, que aprendeu em Foz do Iguaçu, para o mundo. “Sempre que relembro essa história um filme passa na minha cabeça. Se não fosse a capoeira, eu não teria nada do que tenho hoje. Graças ao mestre Ary e à persistência que sempre tive, por não desistir mesmo em meio a tantas dificuldades, minha vida foi transformada”, contou Flávio.
Ary comenta que viu no jovem a garra e o talento necessário não apenas para se tornar um bom atleta, mas um grande ser humano. “Eu exigia muito dele enquanto atleta, pois eu sabia que ele tinha um futuro dentro da capoeira e ele confiava em mim para que isso acontecesse. Mais de 25 anos após o nosso primeiro contato, os resultados estão aí”, disse.
Flávio vive em Segovia, a cerca de 100 km da capital Madrid. Na Espanha, após alguns anos de adaptação, conseguiu se estabelecer profissionalmente e pessoalmente, onde adaptou a técnica, se casou e hoje é professor em diversas academias, escolas e até mesmo fora da Espanha, com alunos na Rússia, Moçambique e Costa Rica.
A semente que ainda se espalha
Toda a história é relatada com orgulho por Ary, que também tem outros alunos espalhados pelo mundo. Todos eles, a partir de uma semente plantada há muitos anos em Foz e que segue sendo cultivada até hoje.
“Tive a honra de viajar para a Inglaterra, Espanha, Portugal, França, vários países da América do Sul, enfim, tudo por conta da capoeira. Sem ela, não sei o que teria acontecido comigo. Fomos levados para um universo que nunca imaginamos”.
O mestre Ary integra o grupo Muzenza de Capoeira há 27 anos, uma das principais escolas do Brasil, e segue dando aulas pela cidade por meio do programa Foz Fazendo Arte, da Fundação Cultural. As aulas são realizadas nos Centros de Convivência, de segunda a sexta em três regiões da cidade: Vila C, Três Lagoas e Jardim Dourado, no contraturno escolar das crianças.
Por conta da pandemia, as turmas estão reduzidas, entretanto, as aulas já chegaram a ter quase 700 alunos. “Estamos ampliando ainda mais para que não somente as crianças participem, mas também os adolescentes, adultos e até idosos, porque a capoeira é para todos. Estamos muito felizes e vamos buscar mais, sempre”, concluiu.