Por, Gilmar Cardoso
“É este o meu conceito a respeito da gramática: é uma arte que se aprende, pela prática, pelo manejo da língua, pela convivência com os que a falam e escrevem corretamente; e se existe a ciência da gramática, não é senão, como várias autoridades competentes a têm definido, a ciência dos fatos da linguagem.
Como todas as ciências, como a ciência inteira, toda ela não é senão fatos: fatos observados, fatos verificados, leis induzidas desses fatos, aplicadas a outros fatos. Portanto, fatos e expectativa de fatos, eis a ciência inteira.
É esta a ciência natural; é também a ciência da gramática, porque as línguas, como tudo neste mundo, não são mais que organismos naturais, cujo desenvolvimento tem suas leis superiores à vontade dos homens.” (Senado Federal. Rio de Janeiro, DF. Obras Completas de Rui Barbosa).
“A minha pátria é a língua portuguesa” é um escrito imortalizado por Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, uma das muitas vozes sob pseudônimo que povoavam a vida e a mente do nosso grande poeta Fernando Pessoa. Assim como ele, tanto no Brasil quanto em Portugal, muitos já cantaram em verso e prosa sobre a – última flor do Lácio, inculta e bela – como diria Olavo Bilac.
O tropicalista Caetano Veloso na música – Língua – cantou gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luiz de Camões. O que quer o que pode esta língua? Indagou.
Recentemente repercuti que a distinção de gênero passou a ser obrigatória no âmbito da justiça, por conta de que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ tornou obrigatório o emprego da flexão de gênero para nomear profissão ou demais designações na comunicação social e institucional do Poder Judiciário.
A justificativa do Ministro do STF, Luiz Fux foi que o gênero masculino sempre foi utilizado para representar o sujeito universal, a totalidade da humanidade, sendo necessária marcar a existência de outro gênero, para além do hegemônico, com vistas à paridade estabelecida na Constituição Federal e ainda não completamente efetivada.
Na prática, essa decisão demarca o necessário reconhecimento cultural da existência de desembargadores e desembargadoras, juízes e juízas, magistrados e magistradas, servidores e servidoras, assessores e assessoras, terceirizados e terceirizadas, estagiários e estagiárias, dentre outras funções no âmbito do Judiciário.
Na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná uma pauta lusíada, por mares nunca dantes navegados; tramita com pelo menos cinco projetos de lei que dispõem sobre questões relacionadas à Língua Portuguesa, ainda que o pano de fundo não seja a preservação do vernáculo, mas envolva questões politizadas em tempo de radicalismo extremo como testemunhamos.
Três deputados estaduais, coincidentemente, apresentaram projetos cuja ementa similar estabelece medidas protetivas ao direito dos estudantes ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com a norma padrão da língua portuguesa e da gramática; enquanto outra proposição em trâmite nas comissões veda expressamente a administração estadual, inclusive as instituições de ensino mantidas pelo Estado do Paraná e as bancas examinadoras de seleções e concursos públicos realizados ou contratados pelo Poder Público Estadual, a utilização em publicidade institucional, informativos, circulares, e-mails, memorandos, documentos oficiais, currículos escolares, editais, provas, exames e instrumentos congêneres, de formas de flexão e de número das palavras da língua portuguesa em contrariedade as regras gramaticais consolidadas.
Registre-se que a motivação parte da iniciativa da Deputada Federal Sra. Chris Tonietto, que apresentou na Câmara dos Deputados em Brasília, o Projeto de Lei nº 211, de 2021, que estabelece medidas protetivas à Língua Portuguesa, idioma oficial da República Federativa do Brasil e patrimônio cultural brasileiro. Em sua justificativa a parlamentar filiada ao PSL do Rio de Janeiro, que o presente Projeto de Lei tem como objetivo principal salvaguardar, por meio da proibição da utilização da denominada “linguagem neutra” na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas de todo o Brasil, bem como em editais de concursos públicos, a integridade do idioma pátrio e assegurar a digna transmissão do legado cultural da língua portuguesa às gerações subsequentes.
Descreve ainda a deputada que no início de novembro do ano passado, o Colégio Franco-Brasileiro1 , instituição privada de ensino localizada no município do Rio de Janeiro, decidiu autorizar seus professores a adotar o dito “terceiro gênero” no trato com seus alunos e nos textos escolares, por meio de seu “Comitê de Diversidade e Inclusão”, provocando uma grave polarização político-ideológica entre pais, alunos e funcionários, e prejudicando o seu funcionamento por conta da exposição midiática2 . A multiplicação de casos semelhantes, evidentemente, poderá impor sérios reveses à educação de crianças e jovens no Brasil.
Destaco que a Justiça Eleitoral do Paraná estreou uma nova identidade visual nas redes sociais, onde as cores azul, amarelo, branco e vermelho realçam conteúdos sobre serviços e cidadania; cores e imagens marcantes, que respeitem a diversidade do eleitorado brasileiro e as diretrizes da Linguagem Cidadã adotada pelo Tribunal. Essa iniciativa inédita atende à Resolução CNJ N° 376/2021, que instituiu o uso da flexão de gênero no Poder Judiciário. Nos próximos dois meses, o Tribunal vai apresentar dicas e informações sobre a Linguagem Cidadã em oito matérias e cards temáticos para as redes sociais e para o púbico interno do Tribunal.
Além disso, determina também o emprego da flexão de gênero, com o uso de palavras neutras, nos dois gêneros ou no plural indefinido. Há ainda capítulos dedicados às palavras e expressões que não devem ser utilizadas pelo poder público por reforçarem preconceitos contra pessoas negras, pessoas com deficiência e a comunidade LGBTI+.
As pautas dos Poderes Legislativo e Judiciário paranaense neste aspecto apresentam-se divergentes e no meio, a Língua Portuguesa serve como pretexto; e neste contexto, melhor concluir com o Pessoa na pessoa, nos versos de Caetano através do seu imortal desassossego ao palavrar: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha”.
Como profetizou Ruy Barbosa, a degeneração de um povo, de uma nação ou raça, começa pelo desvirtuamento da própria língua. E como diz o folclore político que, ao ser indagado sobre os motivos de sua renúncia, em 1961, teria dito: “Fi-lo porque qui-lo”.
GILMAR CARDOSO, advogado, poeta, membro do Centro de Letras do Paraná e da Academia Mourãoense de Letras.