Como o transporte público gratuito passou de utopia a realidade e ajudou a salvaguardar a democracia no Brasil
Roberto Andrés
Fevereiro de 2021. Sede da prefeitura de Caeté, cidade de 45 mil habitantes em Minas Gerais. O prefeito Lucas Coelho, do Avante, senta-se à frente do proprietário da empresa que opera o transporte público na cidade. A situação é crítica. A pandemia de Covid-19 fez cair pela metade o número de viagens nos ônibus. Com isso, a arrecadação da tarifa deixou de sustentar o serviço. A empresa havia reduzido a oferta, e estava com frota ociosa. Aquela conversa já ocorrera no ano anterior, e Coelho convencera o empresário a manter o serviço sem aumentar a tarifa, que estava em 4 reais – um valor um tanto alto para os padrões econômicos locais.
Naquela tarde de verão, não teve jeito. O empresário afirmou que iria encerrar o contrato de concessão e abandonar o serviço. A prefeitura tinha uma bomba no colo. Não se vislumbrava outra empresa para assumir o contrato naquelas condições. Ficar marcada como a gestão em que o transporte público faliu na cidade não parecia promissor. Lucas Coelho terminou o encontro preocupado.
Ao seu lado estava Fúlvio Brandão, vereador do Avante que era líder do governo na Câmara. Assim que o empresário saiu da sala, o parlamentar disse que tinham ali uma oportunidade. Ouviu uma exclamação de surpresa, e começou a explicar. O financiamento pela tarifa estava exaurido, mas a prefeitura poderia arcar com os custos do sistema e oferecer ônibus com tarifa zero. Contratariam a empresa por quilômetro rodado, o que caberia no orçamento do município. Ainda mais porque a prefeitura deixaria de gastar com o vale transporte dos seus funcionários.
Coelho pediu ao vereador que detalhasse a proposta. Ele então buscou em seu celular alguns contatos antigos, pessoas com as quais não falava havia algum tempo. Em meados de 2014, o movimento Tarifa Zero BH criara uma frente metropolitana, para abordar a situação do transporte coletivo nas mais de trinta cidades do entorno da capital mineira. O movimento surgira durante as Revoltas de Junho de 2013, na ocupação da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Um dos integrantes da frente metropolitana era Brandão, à época um estudante universitário que havia organizado protestos pelo transporte em Caeté.
Depois de um tempo, a frente metropolitana se desmobilizou, mas alguns de seus integrantes seguiram conectados ao debate do transporte público. Em 2015, aconteceu em Belo Horizonte uma palestra de Lúcio Gregori, ex-secretário de Transportes da cidade de São Paulo que havia proposto a Tarifa Zero à prefeita Luiza Erundina no início dos anos 1990. Brandão compareceu. Fez anotações em seu caderno e ao final tirou uma fotografia com Gregori. Passariam cinco anos até que o rapaz voltasse a se envolver com o tema. Durante esse período, ele foi secretário de Esporte, Juventude, Turismo, Cultura e Patrimônio da prefeitura de Caeté, elegeu-se vereador e tornou-se líder de governo.
Depois da tensa reunião com o empresário de transporte, Brandão passou a contactar seus conhecidos do Tarifa Zero BH. Junto com André Veloso, um economista integrante do movimento, elaborou uma nova proposta de concessão para o transporte público da cidade. O prefeito gostou da proposta, e enviou um projeto de lei à Câmara de Vereadores, aprovado com unanimidade. Assim foi feito um piloto de seis meses. Deu certo. A população estava satisfeita, e o gasto coube no bolso do município. Em seguida a prefeitura assinou um contrato de cinco anos com a empresa.
Os resultados da política têm sido expressivos. Segundo o vereador, em 2019 os ônibus de Caeté atendiam cerca de 40 mil viagens por mês. Durante a pandemia, esse número caiu para cerca de 18 mil. Com a Tarifa Zero, no final de 2022 o sistema já atendia mais de 80 mil viagens por mês. As pessoas passaram a se deslocar para fazer uma série de coisas que antes não faziam. Em média, 1 300 viagens eram represadas diariamente devido ao custo da tarifa. Ao contrário das previsões feitas por opositores da proposta, não houve nenhum indício de aumento de depredação nos ônibus.
Embora não tenham sido feitas pesquisas de opinião, a população parece avaliar bem a política. O problema que costuma ser apontado são os ônibus mais cheios, já que a oferta de veículos não cresceu na mesma proporção da demanda por viagens. Brandão enumera histórias que ouviu de pessoas que tiveram a vida transformada pela mudança – um paciente de hemodiálise retomou o tratamento que havia interrompido por não ter dinheiro para a passagem; uma vendedora de marmitex pôde contratar um funcionário com a economia que fez; alunos de um curso técnico que estava com alta evasão voltaram a frequentar as aulas.
O slogan usado pela prefeitura na propaganda da Tarifa Zero é “a maior política pública da história” de Caeté. O que os criadores da peça publicitária talvez não saibam é que a cidade participa da maior onda de gratuidade do transporte da história do Brasil.
Quando Lúcio Gregori apresentou a Luiza Erundina a ideia de implantar a Tarifa Zero nos ônibus de São Paulo, não havia nenhuma cidade no Brasil que praticasse a política. Os registros indicam que era oferecida em apenas sete cidades no mundo – três na França e quatro nos Estados Unidos, todas com menos de 100 mil habitantes, e uma delas oferecia a gratuidade somente durante o verão. Foram notáveis a ousadia e o espírito desbravador da prefeita e sua equipe, que buscaram implementar, na maior cidade da América Latina, uma política pública pouquíssimo testada e muito desconhecida. Mas a proposta não foi aprovada pela Câmara de Vereadores, em um momento de fortalecimento da oposição.
Quatro anos depois nasceu, meio que por acidente, a primeira experiência de gratuidade do transporte no Brasil. Foi em Monte Carmelo, uma cidade de pequeno porte na Região Oeste de Minas Gerais. O município abriga um polo de fabricação de telhas e produtos cerâmicos que remonta à primeira metade do século XX e se consolidou abastecendo a construção de Brasília. Em 1970, Monte Carmelo tinha cerca de 13 mil moradores na área urbana; em 1980, eram quase 22 mil. O crescimento populacional levou a prefeitura a fazer, em 1983, o primeiro contrato para o serviço de ônibus urbano, que tinha apenas uma linha. A empresa concessionária era composta pelo proprietário e um par de funcionários.
Dez anos depois o contrato expirou, e o serviço já não atendia as então quase 30 mil pessoas que residiam na zona urbana, além de 5 mil na área rural. Com a expansão territorial, o deslocamento passou a ser um problema. Trabalhadores tinham dificuldades de chegar às fábricas e de retornar às suas casas na hora do almoço. Estudantes de cursos noturnos estavam abandonando os estudos. Para atender à demanda crescente, começaram a pipocar operadores clandestinos de transporte, que atuavam de forma irregular e oscilante. Quando percebiam que o lucro não estava a contento, simplesmente abandonavam o serviço.
A situação estava nesse ponto quando Gilson Brandão, um médico da cidade, iniciou sua gestão como prefeito. Rapidamente, formou-se consenso entre a prefeitura e a Câmara de Vereadores de que deveria haver um sistema público na cidade que não ficasse a reboque das oscilações das empresas. A prefeitura contratou onze motoristas e adquiriu cinco ônibus, que começaram a circular em 14 de setembro de 1994. Como era um sistema novo, optou-se por iniciar a oferta gratuitamente – dessa maneira, seria possível medir a demanda, comparar com os custos e estabelecer o valor da tarifa.
Mas, assim que os ônibus começaram a circular sem tarifa, percebeu-se que seria impopular passar a cobrar pelo serviço. Além disso, um consultor alertou que a cobrança não poderia ser feita diretamente pela prefeitura. Seria necessário, para gerir os recursos, criar uma autarquia, cujos custos de operação seriam mais altos do que a arrecadação tarifária. Nesse contexto, manter o sistema gratuito era a solução mais simples e lógica, embora não fosse o plano inicial. Foi assim que nasceu a primeira experiência de Tarifa Zero do Brasil, também uma das primeiras do mundo.
Nos anos seguintes, a adoção da política no país seguiu lenta, com casos esporádicos aqui ou acolá. Em 2012, eram catorze cidades, todas elas de pequeno porte, segundo levantamento feito pelo jornalista Daniel Santini, da Fundação Rosa Luxemburgo. Nessa época, quando falava de gratuidade no transporte em suas palestras, Lúcio Gregori costumava dar o exemplo da cidade de Hasselt, na Bélgica, pois não havia nem mesmo conhecimento difundido e acumulado sobre as experiências brasileiras.
Esse cenário começou a mudar depois das revoltas de 2013, que colocaram o tema na ordem do dia. Em 2014, a cidade de Maricá, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, iniciou a adoção da política. Em resposta aos anseios expressos nas ruas, o município implantou a gratuidade em novas linhas já no final daquele ano. Rapidamente começaram os conflitos entre a prefeitura, que tinha à frente Washington Quaquá, do PT, e as empresas que operavam a concessão do transporte público na cidade.
A mais poderosa delas se chamava Viação Nossa Senhora do Amparo, nome dado em homenagem à padroeira de Maricá. O comando da companhia tinha o perfil típico do empresário de ônibus brasileiro. Seu fundador, Jacintho Luiz Caetano, filho de uma família humilde, começou a trabalhar na adolescência, transportando produtos a cavalo. Em 1950, fundou a empresa de ônibus, que cresceu com a intensa urbanização dos anos seguintes. Em 2019 chegava a 280 ônibus e mais de 1 mil empregados. Para se ter ideia do poder político da família, o terminal de ônibus e uma escola pública em Maricá levam o nome do empresário, falecido em 1986.
Em 2015, as concessionárias de ônibus de Maricá acionaram a Justiça, alegando que os ônibus gratuitos da prefeitura configuravam concorrência desleal. Iniciou-se então uma batalha judicial pesada, com idas e vindas. A primeira vitória foi da empresa, que conseguiu paralisar os “vermelhinhos” – como ficaram conhecidos os ônibus gratuitos. Quinze dias depois, a prefeitura derrubou a liminar, e o serviço voltou a operar. Em 2016, houve nova paralisação por ordem judicial, dessa vez por seis meses.
Só em abril de 2017 a prefeitura conseguiu retomar definitivamente o serviço. O prefeito havia feito seu sucessor, Fabiano Horta (também do PT), que prometeu ampliar a política de gratuidade do transporte. Ao término do primeiro governo de Horta, em 2020, chegou ao fim o contrato de concessão privada do transporte. A prefeitura realizou nova licitação e passou a implementar o transporte gratuito em toda a cidade. A nova licitação tinha o mesmo modelo concebido por Gregori e equipe na São Paulo de 1990: as empresas são contratadas para operarem linhas e recebem pelo serviço prestado, enquanto os recursos públicos sustentam o sistema, e a população utiliza o serviço livremente.
Maricá trouxe uma nova escala para a Tarifa Zero no Brasil. Com mais de 150 mil habitantes, mostrou que a política poderia funcionar em cidades médias. Entre 2013 e 2019, mesmo com a crise econômica e o caos político, o número de municípios com transporte gratuito dobrou no país, enquanto a população atendida por essa política aumentou em 2,6 vezes. Um crescimento considerável, mas ainda pequeno frente ao que viria em seguida.
Com o início da pandemia, os sistemas de transporte no Brasil entraram em colapso. A queda do número de passageiros foi abrupta, já que muitas pessoas deixaram de circular e outras migraram para o transporte particular. Só seguiu usando os ônibus, trens e barcas quem não tinha outra opção.
Nos países em que o transporte é financiado majoritariamente por recursos públicos, a oferta foi mantida durante a pandemia, o que resultou na redução do número de usuários por veículo. Já no Brasil e em outros lugares onde o custo é bancado sobretudo pela tarifa, o transporte não possui capacidade de se adaptar à queda de demanda. Com menos usuários, a receita despencou e, para compensar, as empresas reduziram a oferta e os veículos ficaram mais cheios. As pessoas mais pobres tiveram que se aglomerar em veículos lotados. Pesquisas mostraram correlação entre mortes e internações por Covid e maior taxa de utilização do transporte público. Os ônibus e trens tornaram-se engrenagens de um matadouro, enquanto as classes mais ricas circulavam em automóveis ou faziam home office.
Ainda que tenham adaptado suas ofertas, os sistemas de transporte no Brasil entraram em uma situação muito difícil. A queda abrupta de receita não era totalmente compensada pelas reduções de linhas e horários, mesmo porque as empresas ficavam com frota e funcionários ociosos. A grande Recife reduziu em quase 50% sua oferta de transporte público. No Rio de Janeiro, 176 linhas deixaram de circular. Teresina entrou em uma crise crônica, com interrupção do serviço e a população impedida de se deslocar. Devido à grande força política das empresas de ônibus, em muitas dessas cidades o poder público perdera a capacidade de controlar as receitas e custos e de regular a oferta.
A crise fez o sapo pular. Mais e mais cidades passaram a buscar outras formas de financiamento, gestão e oferta do transporte. E aí a Tarifa Zero, conforme concebida em São Paulo em 1990 e implantada em duas dúzias de cidades desde então, mostrou-se uma boa opção, como foi o caso do município de Caeté. Somente em 2021, treze cidades aderiram à gratuidade do transporte, fazendo com que essa política passasse a atender 1,9 milhão de pessoas. A maior delas foi Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, com mais de 350 mil habitantes.
Além de ser a maior cidade do Brasil com Tarifa Zero, Caucaia trouxe uma novidade. Até aquele momento, a política só era implantada em cidades com menos de 100 mil habitantes ou que tivessem orçamentos acima da média, como Maricá – cujo caixa da prefeitura é beneficiado pelos royalties do petróleo. Caucaia não possui fontes especiais de recursos e financiou o transporte com o aumento da arrecadação gerado por reajustes de impostos. A cidade tampouco é gerida pela esquerda, mas por um prefeito que foi apresentador de programas de tevê de cunho policialesco, eleito pelo Pros.
Em 2022, outras doze cidades aderiram à gratuidade do transporte no Brasil. A maior delas foi Paranaguá, no estado do Paraná, com mais de 150 mil habitantes. Nos primeiros meses de 2023, outras dez cidades adotaram a política – incluindo Palmas, a primeira capital a testá-la. Até o fechamento desta edição, a Tarifa Zero havia chegado a 69 cidades, onde vivem 3,15 milhões de pessoas. Em 2012, antes das Revoltas de Junho, eram catorze cidades, nas quais vivem 360 mil pessoas. Apenas quatro cidades reviram a gratuidade depois de implantá-la – a taxa de manutenção da política é, até o momento, de 93%.
Ciclos de manifestações que apresentam propostas transformadoras enfrentam uma contradição de partida. Os manifestantes levam às ruas ideias ousadas, colocadas com força na cena pública, mas raramente a mudança almejada acontece no curto prazo. É preciso defender a proposta como se fosse possível implementá-la amanhã – do contrário, a mobilização não terá força –, mas a verdade é que as mudanças sociais são lentas. Cria-se, então, um descompasso, que costuma gerar a percepção de que o saldo da revolta é nulo ou até contraproducente.
Mas, quando os protestos não se desdobram em resultados práticos e conquistas institucionais, eles servem para quê? Para mudar a mentalidade da sociedade. Dentre os autores que utilizam esse mesmo argumento está o antropólogo norte-americano David Graeber, que cita movimentos que geraram importantes transformações nos Estados Unidos, como o abolicionista e o feminista, mas “levaram um bom tempo” para obter resultados. As mudanças que almejavam – o fim da escravidão, o sufrágio universal – costumavam ser vistas como utopias inalcançáveis, mas, a cada sacudida social gerada por ciclos de manifestações e seus desdobramentos, essas ideias ganhavam mais espaço na sociedade.
Nesse sentido, o que grandes ciclos de revoltas são capazes de fazer é transformar ideias vistas como impossíveis em ideias aceitáveis. É tirar a utopia do campo do irrealismo. Essa perspectiva ganha escala na abordagem do sociólogo Immanuel Wallerstein, para quem as revoluções dos últimos séculos consistiram em transformações globais do senso comum da política, constituindo movimentos de mudança de mentalidade que alteraram profundamente, em médio prazo, sociedades de diferentes continentes.
Nesse sentido, é possível ver o ciclo de revoltas de 2011 a 2013 como um movimento global que fez com que ideias consideradas absurdas ou pouco relevantes ganhassem espaço no debate público. O Occupy Wall Street, embora não tenha tido nenhuma vitória institucional imediata, parece ter contribuído para uma mudança de mentalidade nos Estados Unidos. O número de norte-americanos que consideravam graves os problemas de concentração de riqueza no país deu um salto após os acampamentos de 2011, iniciados em Nova York e que depois se espalharam por todo o país. Isso desembocou, alguns anos depois, na forte candidatura de Bernie Sanders nas primárias do Partido Democrata e na emergência de novos parlamentares dessa legenda, que colocam a desigualdade e a captura da política pelos mais ricos no centro de suas agendas.
Quando os ativistas do Movimento Passe Livre (MPL) e de outros movimentos incendiaram o Brasil com suas faixas pedindo “TARIFA ZERO” ou “POR UMA CIDADE SEM CATRACAS”, a gratuidade do transporte era uma política marginal. Mesmo as pessoas envolvidas no assunto conheciam pouco sobre os casos existentes. O mais comum era considerar a proposta impossível e uma agenda de lunáticos. Em 13 de junho de 2013, na escalada das manifestações de rua, a Folha de S.Paulo, em um editorial em que propunha à Polícia Militar “retomar a Paulista” dos vândalos, colocou a coisa nos seguintes termos:
Pior que isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça. O irrealismo da bandeira já trai a intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista.
A realidade foi cruel com o editorialista. Após as revoltas de 2013 veio uma onda de “transporte público de graça” no Brasil. Essa onda começou devagar, e foi ganhando força. Foi preciso que as ideias se assentassem, se ramificassem no tecido social, conquistassem mentes e corações, e de repente o milagre acontecesse: “Ideias consideradas verdadeiras insanidades rápida e naturalmente se tornam o principal tema de debate”, escreveu Graeber no livro Um Projeto de Democracia: Uma História, uma Crise, um Movimento.
Nas eleições de 2020, nada menos do que metade dos candidatos à prefeitura em capitais brasileiras apresentou algum tipo de proposta de redução da tarifa de ônibus – em eleições anteriores, essa era uma agenda pouco abordada. Mais do que isso, a proposta Tarifa Zero ganhou terrenos políticos insuspeitos. Ensaiada pelo governo Erundina em 1990 e levada ao debate público nacional pelo MPL em 2013, a proposta nunca havia sido abraçada majoritariamente pelo PT. Em 2020, candidatos desse partido em capitais como São Paulo e Belo Horizonte propuseram a política em seus programas de governo.
Em uma estação de embarque de ônibus de Porto Alegre, um homem negro caminha enquanto fala para a câmera. Ele denuncia a extinção da gratuidade do transporte na cidade no primeiro turno das eleições de 2022, que ocorreria em poucos dias. Desde 1995, a capital gaúcha oferecia passe livre em doze dias do ano, incluindo os de votação. Em 2021, o prefeito Sebastião Melo, do MDB, da base do então presidente Jair Bolsonaro, aprovou uma lei que desobrigava o município de oferecer a política. Às vésperas do pleito de 2022, a prefeitura anunciou que seria cobrada a passagem. Se o prefeito imaginasse o que viria em seguida, teria mantido a gratuidade.
O rapaz que denunciava a situação estava acostumado a frequentar aquele terminal. Matheus Gomes atuava nos movimentos pelo transporte na cidade desde 2010; diversas vezes esteve na estação, mobilizando pessoas para protestos. Na luta que derrubou o aumento da tarifa em 2013, ele foi uma das principais lideranças. Foi também um dos ativistas processados na Justiça, teve sua casa invadida por forças de segurança e policiais à paisana o ameaçaram. Em 2020, Gomes se elegeu vereador pelo PSOL. E, dois anos depois, esteve no front inicial de uma mobilização que levou a uma surpreendente onda pelo passe livre nas eleições.
As denúncias contra a extinção do passe livre em Porto Alegre rapidamente ganharam corpo. O senador Randolfe Rodrigues, da Rede, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) requerendo que as cidades que tivessem políticas de gratuidade no transporte fossem obrigadas a mantê-las. Parecia haver um movimento de prefeitos alinhados a Jair Bolsonaro para redução do transporte – o que tenderia a aumentar a abstenção da população mais pobre, segmento em que o candidato tinha baixa votação.
O caso ganhou destaque nacional. Prefeitos de algumas capitais, como Rio de Janeiro e Salvador, anunciaram a implementação inédita do passe livre nas eleições. O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, concedeu uma liminar que obrigava os municípios a manterem a oferta de transporte e proibia aqueles que praticavam a gratuidade de retirar a política. Após pressão social e diálogos com o Ministério Público, o prefeito de Porto Alegre teve que recuar e garantir o transporte gratuito no dia do pleito. A adesão chegou a 14 capitais e 50 outras cidades no primeiro turno.
Para o segundo turno, foi realizada uma campanha pela causa. A partir da mobilização inicial de organizações como a Quid e o Nossas, formou-se uma grande coalizão. E a coesão social que permitiu isso remetia a 2013. Ativistas e movimentos sociais que participaram das lutas pelo transporte então seguiram em contato nos anos seguintes e foram constituindo uma rede, acrescida de novos atores que passaram a abordar o tema. Dois encontros presenciais, em Niterói (2019) e em Belo Horizonte (2022), fortaleceram os laços dessa rede.
Isso ajudou na rapidez e na força com que a coalizão da campanha do Passe Livre pela Democracia foi formada. Aderiram também organizações ligadas às agendas da democracia, do feminismo e da juventude, além de centrais sindicais. A pauta do passe livre estava na ordem do dia. No dia 19 de outubro de 2022, foi lançada a campanha (da qual fui um dos coordenadores) que pedia transporte gratuito nas 27 capitais. A reunião de lançamento contou com representantes de mais de cinquenta entidades. Por intermédio do site da campanha, milhares de pessoas passaram a enviar e-mails para os prefeitos de suas cidades exigindo a política.
O que veio em seguida foi uma avalanche. Parlamentares e partidos políticos se somaram à mobilização, pressionando os prefeitos. Alguns acionaram a Justiça para obrigar as prefeituras a oferecer o passe livre no segundo turno. A cada dia, mais e mais cidades anunciavam que adotariam a política. Assim que o site da campanha era atualizado, vinha a notícia de uma nova adesão. Em São Paulo, foi feito um ato em frente à prefeitura, no dia 24. Na tarde do mesmo dia, sentindo que seria obrigado pela Justiça a fazê-lo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) anunciou o passe livre.
Por fim, todas as capitais adotaram a política, além de mais de trezentas outras cidades em oito estados, abarcando mais de 100 milhões de habitantes. Criou-se uma onda irreversível, a que até aliados ferrenhos de Jair Bolsonaro, como os governadores Rodrigo Garcia (PSDB-SP) e Romeu Zema (Novo-MG), tiveram de aderir. Para milhares de pessoas que antes teriam que escolher entre almoçar ou pagar o transporte, o direito ao voto pôde ser exercido de forma igualitária.
O resultado foi significativo. Pela primeira vez na história do país, a abstenção caiu entre o primeiro e o segundo turno (em outros pleitos, ela foi de 1% a 3,5% maior). Antes da votação, nenhum analista cogitava a possibilidade de queda do número de abstenções. Uma comparação preliminar, que avaliou a taxa de abstenção nas cidades que adotaram o passe livre, estimou que a política pode ter resultado em pelo menos 250 mil votos a mais no segundo turno.
Tudo isso ocorreu apesar dos esforços do governo Bolsonaro de reduzir a votação da população mais pobre. Ações ilegais da Polícia Rodoviária Federal tentaram cercear o acesso de pessoas da base da sociedade às urnas. Aparelhado pelo presidente, o órgão achou por bem realizar uma série de blitze no dia do pleito – um procedimento atípico, marcado pela inspeção vagarosa em regiões onde Bolsonaro teria baixa votação, segundo pesquisas de opinião.
Ao final, quem venceu a “batalha dos ônibus”, como o episódio ficou chamado, foi a democracia. Segundo o jornalista Guilherme Amado, Bolsonaro chegou a dizer que o passe livre nas eleições foi responsável por sua derrota. À parte o fato curioso de um político afirmar que perdeu a eleição porque a população pôde ir votar, o episódio acabou por formar um consenso no campo progressista em torno da essencialidade do transporte para a população mais pobre (que, sim, de fato majoritariamente votou em Lula no segundo turno). E, em uma eleição apertada e de suma importância para o país, o transporte público gratuito deu sua contribuição para salvaguardar a democracia.
Tudo isso acabou por selar um reencontro simbólico entre atores que já se estranharam bastante: Lula e a Tarifa Zero; o núcleo duro do pt e os movimentos que lutam pela gratuidade do transporte. Em dezembro de 2022, membros da equipe de transição do governo Lula no grupo de trabalho das Cidades propuseram ao governo levar adiante estudos para implementar a gratuidade do transporte no país. Isso ganhou força após o prefeito de São Paulo anunciar um par de vezes que avalia adotar a Tarifa Zero.
O que parecia utopia inalcançável passou a habitar o campo do possível.
Oentendimento de que o direito à mobilidade é essencial para a concretização dos direitos fundamentais e elemento-chave da vida democrática é bastante recente.
A ideia de que seria socialmente justo e aceitável ter escolas, hospitais, postos de saúde, praças e parques acessíveis sem ônus para os usuários – ou seja, pagos indiretamente por recursos públicos – tornou-se hegemônica em muitas sociedades, especialmente nas democracias ocidentais do pós-Segunda Guerra. O mesmo não ocorreu com a ideia de que o transporte para acessar essas atividades e equipamentos deveria ser também gratuito. Especialmente em sociedades com elevada desigualdade, o financiamento do transporte somente pela tarifa produz a exclusão de segmentos importantes dos direitos substantivos, resultando na situação-limite daqueles que o geógrafo Milton Santos definiu como “prisioneiros do espaço local”.
A tarifa cobrada do usuário opera como barreira ao uso do transporte público, o que não ocorre em serviços de educação, saúde, tratamento de lixo, iluminação pública, manutenção de praças etc. Assim como o transporte, todos esses serviços têm custos, mas que são financiados por recursos públicos ou por taxas – de todo modo, pagos de forma indireta, desvinculando o uso do financiamento.
O caso do passe livre nas eleições brasileiras de 2022 evidencia que a tarifa do transporte não é apenas uma barreira para o acesso a direitos substantivos, mas também a direitos civis e políticos. Votar é o mais elementar desses direitos. Mas uma democracia plena vai muito além do voto. É preciso se mover pelas cidades para ter acesso a reuniões, audiências, encontros, manifestações e todo tipo de atividade política.
Uma síntese interessante do papel do transporte na concretização de direitos é feita por Magali Giovannangeli e Jean-Louis Sagot-Duvauroux no livro Voyageurs Sans Ticket: Liberté, Égalité, Gratuité (Viajantes sem bilhete: Liberdade, igualdade, gratuidade). O título faz uma brincadeira com o lema da Revolução Francesa, substituindo a palavra “fraternidade” por “gratuidade”. Os autores argumentam que o transporte público de acesso universal é essencial para a concretização efetiva da liberdade (ligada aos direitos civis) e da igualdade (ligada aos direitos substantivos).
O livro apresenta a experiência da cidade de Aubagne, no Sul da França, que implementou a gratuidade no transporte público em 2009 e assistiu a um relevante incremento no uso do serviço desde então. Mais do que isso, argumentam os autores, “a instauração da gratuidade tocou a vida social em toda sua complexidade”, já que, além de “aumentar a frequentação dos ônibus e liberar o poder de compra dos mais pobres”, levou ao aumento da confiança social, aproximou grupos sociais diferentes e ativou dinâmicas de trocas entre eles.
Eis um ponto geralmente pouco observado no debate sobre transportes: além de prover o acesso a serviços elementares e concretizar o direito de ir e vir, o transporte público é, ele mesmo, espaço da vida cotidiana nas cidades. Nos centros urbanos, dada a significativa quantidade de horas passadas no trânsito, as formas de deslocamento constituem parte relevante da experiência de vida das pessoas. Por isso a priorização do transporte público tem potencial de fortalecer a coesão social, ao contrário dos veículos particulares, que levam ao isolamento e à atomização.
Além de ser um espaço público em si, o transporte público tem uma relação positiva com os demais lugares das cidades. Por serem meios de deslocamento eficientes no uso de espaço e energia, os ônibus, bondes e metrôs minimizam os impactos na vida pedestre. Mais do que isso, acabam por fortalecer a vida nas calçadas, já que pressupõem a complementação dos trajetos a pé. Automóveis, ao contrário, maximizam as externalidades negativas na vida pedestre – poluição sonora e do ar, acidentes, ocupação de espaço urbano. Além disso, ao fazerem trajetos porta a porta (ou garagem a garagem), automóveis retiram pessoas das ruas, contribuindo para o esvaziamento da vida urbana.
Quando pensamos a democracia como forma de vida que se faz no cotidiano das cidades, nota-se que a ênfase nos automóveis produz uma rotina de competição, desagregação social e esvaziamento dos espaços públicos. Já a priorização do transporte coletivo tende a gerar convivência social e senso de coletividade, além de intensificar a vida pedestre. Nesse sentido, a Tarifa Zero é um elemento de aprimoramento da vida democrática e se liga ao conjunto de demandas colocado nas ruas em 2013, que buscava, em sua maioria, a melhoria das condições de vida em coletividade e a participação efetiva da população nas decisões políticas.
Trecho do livro A Razão dos Centavos – Crise Urbana, Vida Democrática e as Revoltas de 2013, a ser lançado em junho pela Editora Zahar.
Roberto Andrés é urbanista e professor da UFMG. Foi um dos fundadores da revista Piseagrama e da iniciativa Nossa América