Ao unir a arte que aprendeu nas ruas de São Paulo com influências da própria família, a grafiteira dá vida a traços únicos e com representatividade
A entrevistada desta semana da série Artistas do Iguaçu é uma jovem que, apesar da pouca idade, valoriza o passado de pessoas que a ensinaram e moldaram, mesmo indiretamente, a arte com que ela marca as paredes da cidade. Victória “Ria” tem 23 anos, é grafiteira, estudante e ativista de movimentos sociais.
“Uma vez feito, qualquer pessoa que passe por um grafite vai ser tocada, não sei se positivamente ou negativamente, mas é quase impossível passar sem dar uma olhada. Era isso que acontecia comigo, no caminho para casa, no ônibus, onde eu fosse, via um grafite ou um picho. Dessa forma me apaixonei e venho evoluindo a cada dia”.
Referências de família
Como todo artista, Victória também possui inspirações de outros colegas da street art (arte de rua), como Loss T, Tavz Je, Eneri, Katia Suzue, SP Flix, entre outros. Grande parte são mulheres e artistas com nome marcante no cenário independente. Contudo, vem da mãe, a característica mais marcante para os materiais que produz.
A casa em que mora foi onde passou a infância antes de mudar-se para São Paulo. Nela, Dona Adelaide, a mãe, mantinha uma floricultura e também realizava serviços de paisagismo, algo que marcou muito a sua vida e ainda traz memórias, agora refletidas no uso de muitas cores e da figura feminina nos traços dos grafites.
“Eu vi a minha mãe sempre fazer um trabalho que é considerado muito masculinizado. Ela estava sempre suja de terra, mexendo com as plantas e flores e criando jardins e projetos. Nessa cena é assim também, apesar de termos mais mulheres no grafite, mesmo assim não chega a ser igual. Então eu posso dizer que isso me motiva muito também”.
O início dos traços
Natural de Foz do Iguaçu, aos dez anos a artista mudou-se para São Paulo, capital, onde encontrou uma cena cultural vibrante. Ali, o grafite e a pichação estavam mais do que presentes no cotidiano, como se fossem gritos mais altos em meio ao gigantesco barulho da metrópole.
Aos 16 anos, cansou de ser apenas uma observadora comum e resolveu se lançar dentro desse mundo artístico. Marcado como arte de rua e o estilo marginal, foi com a pichação o primeiro contato prático, até ser conquistada pelo grafite, precisamente o estilo “bomb”, e desde então não o largou mais.
“Esse ambiente era muito democrático. Você poderia chegar com a bagagem que fosse e o pessoal te recebia pronto para ensinar, trocar ideia e curtir junto. Não existia uma competição e era algo que incentivava a criatividade e a originalidade, porque você nunca vai ver um grafiteiro com o mesmo traço de outro, é sempre algo único que cada um desses artistas vai te oferecer”.
Victória relembra que a entrada nesse meio também foi uma forma de romper com um ideal de vida montado para ela.
“Eu sempre achei perfeito tudo aquilo, mas nunca imaginei que pudesse ter a capacidade de fazer. O incentivo é algo muito importante e eu não tive isso para as artes, como nenhuma outra mulher na minha família. Tudo era voltado para ‘estudar e ser alguém na vida’, nada fora disso. Era tudo sobre fazer algo lucrativo e não por amor”.
Evolução como pessoa e artista
Até finalmente conseguir conciliar as duas coisas, como acontece hoje, Ria precisou tomar decisões importantes já na vida adulta. Foi assim que decidiu sair de São Paulo e voltar a Foz do Iguaçu, onde foi aprovada no curso de Antropologia – Diversidade Cultural Latino-Americana da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).
“Eu tinha 19 anos e já não conseguia mais grafitar, por não ter tempo. Trabalhava o dia inteiro, morava de aluguel, passava um sufoco e não conseguia pagar a faculdade. Eu ia para casa só dormir. Foi aí que pensei ‘o que estou fazendo aqui?’. Em Foz, a minha família tinha uma casa que estava fechada e eu queria muito estudar, e tinha a Unila aqui ao lado. Não pensei duas vezes”.
Já em Foz, com mais tempo, se dedicou aos estudos do grafite e aliou os conhecimentos às técnicas que aprendeu pelas ruas de São Paulo. Os primeiros trabalhos na fronteira apareceram e o nome artístico criado, “Ria”, começou a ficar gravado por muitos locais.
Se você passar pelas obras do Gramadão da Vila A, por exemplo, verá um trabalho que ela criou. Em uma iniciativa da Itaipu Binacional, os tapumes que cercam o espaço ganharam significado pelos traços dela e de um colega, o também grafiteiro, Davi Souza.
“Eu comecei a promover o meu nome e conhecer uma galera, como o próprio Davi, que foi um grande professor e me ajudou muito a evoluir. Eu fiz muitas coisas, as pessoas me conheceram e os trabalhos foram surgindo”.
Grafite e profissão
O objetivo de Ria é conseguir conciliar o grafite com a área em que estuda. Em um curso de extensão, ela ajuda a ministrar uma formação com agentes penitenciários, psicólogos e outros trabalhadores de um presídio no Espírito Santo.
Por conta da pandemia, o trabalho vem sendo realizado de forma on-line, mas o objetivo para 2022 é voltar aos atendimentos presenciais e realizar a formação com pessoas do público LGBTQIA+ em cárcere. A intenção é trazer o grafite para ajudar como método de ressocialização.
“Eu realizo as grafitagens, mas sei que não posso me perder e estou aqui para estudar. Mas a minha intenção não é seguir como áreas separadas, mas unir o que aprendo na faculdade com o que aprender nas ruas. Ser professora, talvez, mas nunca deixar de ser uma grafiteira”.
Grafitar para causar diferença
“Eu acredito que toda arte deve cumprir uma função na sociedade. Precisa servir para ir além do lugar comum e chacoalhar mesmo. Toda a arte tem a sua beleza, e não somente no aspecto visual. Seja o grafite ou a pichação, eles cumprem um papel de impacto e trazem a fala para o povo, como se eles também pudessem chegar ao topo”.
Jovem, a artista trabalha para realizar o sonho de incentivar mais pessoas a fazerem diferença no mundo.
“Eu me considero uma pessoa muito sonhadora. Por isso, quero deixar uma contribuição que é a mudança, mesmo que simples, no cotidiano das pessoas. Cada vez mais eu sinto que somos ensinados a ficar acomodados em tudo. Nos acostumamos à rotina do trabalho, a fazer todo o dia o mesmo caminho, pegar o mesmo ônibus. Achar legal só o que falam que é legal, enfim, meu sonho é tentar romper com isso, para que em um desses dias, elas vejam essa exposição a céu aberto e pensem diferente”.
Para o segmento da arte na cidade, enxerga a valorização de potencial dos artistas locais como essencial ao futuro.
“Temos que aproximar essas pessoas. Na arte de rua essa união é muito importante. Com o tempo, vão se criando referências, aprendemos olhando e, nessa prática, surge o incentivo para novos artistas. No que depender de mim, vou até o fim da vida com o grafite me acompanhando”.