Chora, General – Versão 2025

E é nesse contexto que Walter Salles, com seu filme “Ainda Estou Aqui”, consegue o impensável: transformar a arte em um novo “Chora, General"
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Atores de "Ainda Estou Aqui" indicado em três categorias do Oscar 2025 (Foto: Divulgação)

Por Nello Morlotti

Era um daqueles dias de mobilização que fazem a alma da democracia pulsar mais forte. Um tempo em que 50 mil pessoas reunidas numa praça não eram multidão, mas o compasso de uma orquestra de vozes que queriam, juntas, compor uma nova sinfonia de liberdade. Nesse cenário, Aldo Rebelo é chamado ao microfone. Sem alarde, pega o equipamento, dá uma olhada rápida na massa de gente e dispara: “Choooooraaaaa, general.”

Pausa longa. Daquelas que fazem o silêncio virar uma ponte entre a frase e o impacto. O público espera, meio atônito. Ele então retoma, ampliando a metralhadora poética: “Choooooraaaaa, capitão.” Outro silêncio, mais denso que o primeiro. Um murmúrio começa a surgir, a multidão compreende. Aldo segue, desfiando uma sequência de patentes digna de uma parada militar inversa. Cada frase era um tapa de luva retórico que fazia a plateia entusiasmada delirar. Genial, marcante, irresistível.

Era o Brasil de um tempo em que clamávamos, a plenos pulmões, por dias verdadeiramente livres. Queríamos eleições diretas, o fim das censuras, a costura do pacto federativo que realmente nos unisse. E vencemos. A Constituição de 88, cidadã, foi o respiro necessário de um país sufocado.

Mas, ah, a vida. Ela corre, e o tempo com ela. Vieram os avanços legislativos, as conquistas sociais, os direitos humanos – pilares daquilo que chamamos progresso. Só que o Brasil, tal como seu futebol, gosta de drama. Surgem os recortes enviesados da realidade, as narrativas distorcidas, e, junto com elas, os sabotadores do sistema. Gente que olha para as trincheiras da democracia e decide cavar buracos ao invés de pontes.

E é nesse contexto que Walter Salles, com seu filme “Ainda Estou Aqui”, consegue o impensável: transformar a arte em um novo “Chora, General.” O Brasil, que tantos insistem em carimbar como exótico e problemático, indica sua cultura ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional. No red carpet do mundo, lá estaremos, desfilando não com ouro ou petróleo, mas com a arte de saber contar histórias. Porque, em meio ao caos, são sempre as ferramentas culturais que permanecem ao lado dos que querem o bem comum.

Walter Salles não empunha um microfone em uma praça de 50 mil pessoas. Ele empunha a câmera. Não há pausas retóricas, mas longos planos e diálogos que nos fazem pausar o pensamento. E assim, nos lembra de que, apesar de tudo, ainda estamos aqui. Chora, general. Chora, capitão. Chorem todos aqueles que, entre pausas e devaneios, ainda não entenderam que o futuro é das ideias, da arte e da união.

Nello Morlotti é jornalista e publicitário.

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