A defesa de dissertação de mestrado de Délia Taku Yju Martines foi uma demonstração de que é possível unir diferentes culturas e saberes; a formalidade e o conhecimento ancestral. Ela escolheu a Opy [casa de reza], no Tekoha Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, para apresentar o trabalho que desenvolveu no mestrado Interdisciplinar de Estudos Latino-Americanos (IELA): “Ñamombarete Arandu Guarani Rembiasakue: a contribuição do saber originário na construção das práticas de ensino e aprendizagem no Colégio Teko”.
A apresentação foi o desfecho de um caminho marcado por aprendizados, descobertas e desafios. Alguns dias depois da apresentação, ao ser questionada sobre o que representa receber o título de mestre, Délia se emocionou. “Acredito muito que o meu título define pra mim: força e a coragem”, respondeu, com os olhos marejados e a fala embargada. “Representa muito pra mim. Primeiro, porque venho de uma família muito humilde. Lutei bastante pra viver, desde criancinha. Eu sempre luto pela minha família. Está escrito tudo no meu trabalho o que eu passei. Eu não tenho preguiça de trabalhar pelo bem da minha família, pela comunidade. Então o mestrado pra mim representou muitas coisas.”
Na casa de reza, onde foram reunidos tecnologia e signos espirituais guaranis, Délia fez a apresentação da dissertação em sua língua para um público formado por estudantes e professores de ensino fundamental e médio da comunidade, familiares e amigos. Para os membros da banca não falantes de guarani houve tradução consecutiva feita pelas estudantes da UNILA Emília Espínola Duarte e Milagros Ojeda. “Foi uma quebra de protocolos total, com o protagonismo da comunidade, que nos trouxe esse novo olhar”, diz Laura Fortes, orientadora de Délia em sua dissertação. “As coisas se misturam. Havia os signos do saber tradicional, que têm essa relação com a espiritualidade, com os conhecimentos que se articulam. Para os guarani, tudo é conectado”, comenta a docente.
Preservando a cultura
A nova mestre, que é diretora auxiliar e pedagoga no Colégio Teko Ñemoingo, preocupa-se em manter a cultura guarani viva e importante para as novas gerações. “Como participo com rezadores da aldeia chegou essa ideia pra mim de como eu posso trazer dentro da escola todo esse conhecimento da comunidade.” Essa relação entre o ensino escolar e a educação indígena foi a linha do trabalho de Délia. “O que é a educação indígena: é tudo aquilo que a gente aprendeu na comunidade. Tudo que foi ensinado com o nosso pai, com nossos avós que já não estão mais aqui”, comenta.
Na dissertação, Délia reuniu a memória do avô “que foi um rezador muito importante da comunidade” e a memória da ancestralidade guarani. “Ele deixou muito ensino da importância do batismo, da água, do fogo, de como é bem viver na comunidade indígena, como a comunidade deve se comportar”, diz. Para ela, poder reunir e ensinar sua cultura para as crianças e adolescentes da comunidade e divulgar o guarani para “fora da aldeia” é o ponto mais importante do seu trabalho. “O meu estudo, o meu esforço não é pelo título [de mestre]. É uma forma de levar o conhecimento do guarani pra fora e uma forma de fortalecer. Porque se você não tem estudo não tem como publicar um artigo. Não tem como você divulgar a cultura guarani. Então, o meu título significa mesmo fortalecer a cultura guarani, mostrar que o povo guarani ainda existe e resiste.”
As disciplinas representaram uma grande dificuldade para ela. “Não só por ser indígena, mas é uma linguagem muito diferente. O artigo escrito é muito diferente do que estou acostumada. Ainda bem que os professores entenderam que eu tinha que usar o meu conhecimento”, aponta. Délia foi coorientada pelo docente Mário Ramão e recebeu contribuições da docente Angela Maria de Souza, que sugeriu a escrevivência como metodologia para a construção da dissertação.
Assim, as memórias do avô, as perdas do pai e da avó durante o mestrado passaram a fazer parte do trabalho final de Délia. “Não teria outro instrumento metodológico teórico que daria conta desse lugar mais subjetivo e da relação com a comunidade. Ou seja, perder o pai e perder a avó nesse processo não é perder apenas os familiares. É perder essa relação com a ancestralidade. Perder e reconstruir. Ressignificar os processos. E ela fez isto durante a escrita”, comenta Laura. “Ela consegue fazer a transição dessa identidade mais subjetiva, dessa cosmovisão e ancestralidade para esse lugar mais duro, para as exigências da universidade, do saber ocidental”, completa.
Délia sabia que não podia ser diferente. “No meu trabalho eu faço mais a parte cultural da minha aldeia porque eu não tinha como fazer um trabalho daquilo que eu não conheço”, destaca. Délia também pode ser considerada uma mediadora cultural. “Ela é uma grande mediadora cultural e isso foi abordado de forma mais contundente com a professora Giane Lessa, que foi banca, e apontou essa perspectiva de a Délia ser uma tradutora da sua própria cultura”, comentou Laura. Também foi banca a professora Joana Mongelo, que é indígena guarani, vive em Santa Catarina e tem trajetória similar à de Délia.
O trabalho desafiador, tanto para aluna como para docentes, está bastante ligado ao próprio objetivo do mestrado, que é interdisciplinar, tem com uma das linhas de pesquisa os trânsitos culturais e “trabalha com temáticas que buscam a relação entre os saberes e as disciplinas”, comenta Laura. O caminho foi difícil, mas Délia não pretende parar. “Eu, como sou neta de um rezador bem espiritual, eu consegui escrever depois de sete anos a memória dele. Acredito muito que ele deu esse caminho pra mim. Deu sinal pra mim escrever. Então é um caminho muito bom. Com certeza eu vou continuar escrevendo.”