Ausência de lei vira regra e hora é de deixar letargia

É preciso construir um modelo de convivência digital em que liberdade e responsabilidade caminhem juntas

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Imagem: João Zisman

Por João Zisman

Desta vez não se trata de abstração. A regulação das redes sociais no Brasil deixou de ser uma hipótese e passou a ser um conjunto de decisões concretas, que já afetam diretamente usuários, plataformas e, sobretudo, os contornos da liberdade de expressão.

Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 8 votos a 3, que as plataformas digitais podem ser responsabilizadas civilmente por conteúdos ilegais mesmo sem ordem judicial prévia, nos casos em que forem notificadas e não agirem para remover publicações ilícitas. A Corte também fixou a obrigação de retirada imediata, independentemente de decisão judicial, quando se trata de conteúdos ligados a crimes graves, como racismo, terrorismo, apologia à violência contra minorias, entre outros.

Com isso, o STF alterou substancialmente a interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que até então protegia as plataformas de responsabilização, salvo nos casos em que houvesse descumprimento de ordem judicial. Agora, o Judiciário ocupou um vácuo legislativo e passou a ditar os contornos práticos da moderação de conteúdo no país, com efeitos vinculantes para todos os casos futuros.

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Não é trivial. O problema aqui não é a ideia de regular, mas o modo como estamos fazendo isso. No lugar de um marco legal construído com participação da sociedade, adotamos um improviso institucional que mistura boa intenção com perigos de precedentes autoritários. E isso, em democracias, costuma sair caro.

Ao mesmo tempo, não se pode ignorar o outro lado da moeda, o das plataformas. A retórica da liberdade irrestrita que elas adotaram nos últimos anos começou a mostrar sua face mais tóxica. Não por acaso, quem mais engaja nos ambientes digitais são os conteúdos extremistas, os ataques a minorias, os discursos de ódio, todos amplificados por algoritmos que foram treinados para premiar a polêmica e punir a moderação.

Como bem observou um amigo que acompanha esse tema de perto, o ponto central da discussão não é censura, é responsabilidade. Hoje, não há uma mediação acessível entre o usuário e o que o afeta. Para denunciar um golpe, um anúncio enganoso, um conteúdo racista, muitas vezes é preciso contratar um advogado, como se defender-se do abuso digital fosse um privilégio jurídico, e não um direito básico.

Enquanto isso, as mesmas plataformas que dizem não ter como controlar o conteúdo, conseguem identificar em segundos se alguém buscou por uma chaleira ou um pacote de ração. A tecnologia está pronta, o que falta é disposição. Não há explicação plausível para que algoritmos treinados para vender produtos não possam ser ajustados para coibir danos. O que falta não é capacidade, é interesse.

A responsabilidade pelo que se publica não deveria ser opcional. Tampouco deveria ser monopólio do Judiciário. Toda atividade relevante para a vida pública está submetida a algum grau de regulamentação. Por que essa, que impacta comportamentos, reputações e até democracias, deveria ser exceção?

O Brasil precisa, sim, de uma lei que trate com equilíbrio da moderação de conteúdo, da responsabilização das big techs e dos direitos dos usuários. Mas isso deve ser feito com base na Constituição, e não por meio de atalhos judiciais que concentram poder e corroem garantias.

É hora de sair da superfície do debate e fazer as perguntas certas. Não basta mais denunciar os excessos. É preciso construir um modelo de convivência digital em que liberdade e responsabilidade caminhem juntas, não como opostos, mas como pilares de um mesmo projeto civilizatório.

João Zisman é jornalista e secretário de Comunicação Social da Prefeitura de Foz do Iguaçu.

@fozdiario


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