Recentes decisões dos organismos judiciários trabalhistas internacionais caminham lentamente para definir, afinal, qual é a natureza do trabalho do motorista de aplicativo. Em comum, concessões de garantias sociais básicas aos trabalhadores da categoria.
A natureza do trabalho pelas plataformas digitais é questão de vanguarda no direito do trabalho. Não por ser apenas mais um arranjo de prestação de mão-de-obra que surgiu há pouco, mas porque sua forma de funcionamento, sua maneira excêntrica de orquestrar as atividades daqueles que nela ingressam, desafia profundamente os mecanismos tradicionais pelos quais se rege a prestação tradicional de trabalho, nos quais a lei já possui destreza em regular. Impõe, assim, esforço às organizações jurídicas de todas as nações nas quais estas plataformas operam, no objetivo de gerar regras que harmonizem o notório avanço na prestação de serviços destes novos modelos produtivos com garantias sociais seculares àqueles que neles trabalham.
Desenhar estas linhas, conciliando objetivos aparentemente antagônicos entre a mais pura forma de livre iniciativa e a mais básica garantia de proteção a interesses sociais, é desafio que se desenrola aos poucos; tal tarefa caminha ao sabor das decisões das mais altas Cortes judiciais e casas legislativas ao redor do globo.
Por emblemáticas e pioneiras, vemos o que em sua soberania já se pronunciaram as instituições inglesas, entendendo que o motorista de plataforma, de aplicativo, encontra-se em um novo estado da relação de trabalho: a parassubordinação. Esta descreve relação intermediária entre o empregado e o autônomo, hibridizando estes dois conceitos opostos para permitir que o fato do trabalho por aplicativo encontre amparo em norma que o acolha de forma coerente. Afinal, entendem os ingleses, não se está diante de uma subordinação tradicional, mas doutra forma a autonomia, pura, também se mostra incondizente com as nuances desta espécie de trabalho (como proibição de relacionamento profissional entre motorista e passageiro fora do aplicativo, por exemplo). Ainda que a decisão inglesa seja pragmática e bem resolvida, ela não é definitiva. Lança, entretanto, uma pedra fundamental sobre a questão. Naquele país os motoristas já contam com mecanismo de pagamento de férias e programa de aposentadoria.
A Holanda, por sua vez, pronunciou recentíssima decisão, em 13 de setembro de 2021, tendendo a um viés mais severo do que os ingleses. Motoristas de aplicativo, notoriamente no caso da Uber (que é paradigma neste modelo de trabalho por plataforma) são empregados segundo os holandeses, pura e simplesmente. Entendeu-se naquele país que são preenchidas as condições de contrato naturalmente empregatício, com motoristas subordinados à empresa, que age como empregadora.
Seus elementos de convicção foram no sentido de que trabalhadores verdadeiramente autônomos definem seu próprio valor de trabalho e sua maneira de trabalhar, o que não aconteceria no aplicativo. Em contraste, neste o valor das corridas é definido pela empresa, o acesso (e quem pode acessar a plataforma) igualmente regulamentados unilateralmente pelo aplicativo, impõe-se limite à quantidade de vezes que o motorista pode recusar corridas, se define unilateralmente a solução (e punição) face a reclamações e, por fim, assenhora-se da forma de prestação do trabalho e da definição de qual motorista atende qual passageiro, o que configuraria uma manifesta subordinação.
Chama a forma de contratação da plataforma de autoemprego “no papel”, e que a plataforma possui “autoridade moderna de empregador”, aqui apontando que as novas maneiras de regular o trabalho subordinado, ainda que se distanciem dos modelos tradicionais, não são por isso menos empregatícias.
Esta decisão, emblemática mais ainda singular, é passível de recurso, o que a plataforma Uber já se prontificou em fazer. Diz, na figura de porta-voz, que se decepcionou com a decisão daquela Corte por entender que seus próprios motoristas – ou ao menos esmagadora maioria destes – deseja manter-se independente.
O caso holandês é contraditório, pois há poucos anos já decidira de forma diametralmente oposta no caso do aplicativo Deliveroo, indicando que seus prestadores seriam autônomos, pois cientes dos termos quando aceitaram a vinculação. Agora, inverte o fiel da balança na valoração da autonomia da vontade face à regulação das condições de trabalho.
Nos Estados Unidos, lar da própria empresa Uber, a Suprema Corte da Califórnia também sinalizou por um viés empregatício a estes trabalhadores em um primeiro momento, mas aqui em um aspecto mais subjetivo: indicou que a presunção é de contrato de emprego entre plataforma e motorista, cabendo à empresa do aplicativo provar que aquele profissional não fica sob seu controle e direção. Ante o revés, que culminou em lei estadual impondo a ideia germinada naquela decisão judicial de forma global ao estado desde o início de 2020, empresas como a Uber e Lyft ameaçaram encerrar suas operações locais.
A comoção gerada por esta mudança de paradigma e pelas ameaças de cessação do serviço terminou em plebiscito, no qual o povo da Califórnia, por 59% dos votos, decidiu que motorista de aplicativo não é empregado. Todavia, tal resultado veio ao custo de algumas concessões pelas plataformas, como salário mínimo por tempo trabalhado, seguro em caso de assédio, custeio de parte das despesas operacionais e mesmo plano de saúde aos motoristas em certas circunstâncias.
O embate californiano levou a resultado prático muito parecido com o britânico, ainda que por via muito distinta. Reconheceram-se direitos sociais e garantias mínimas aos motoristas de aplicativo, ainda que sem enquadrá-los na figura empregatícia.
No próprio Japão, onde a liberdade de pactuação tende a ter maior peso, as próprias companhias que gerenciam esta espécie de aplicativo concedem espontaneamente certo grau de proteção social, como seguro acidentário ao motorista, por exemplo.
Todos estes cenários por certo contrastam com o brasileiro, que ainda que possua no ordenamento jurídico rígidos mecanismos de regulação do trabalho, não se prontificou em apresentar soluções para os novos tempos.
Esporadicamente ganham os noticiários decisões judiciais da Justiça do Trabalho que reconhecem relação de emprego entre motoristas de aplicativo e respectivas plataformas, mas estas não são uníssonas. Longe disso.
Não se amadureceu qualquer consenso e tão pouco emergiu uma solução de concessões recíprocas. O Brasil continua caminhando apenas com as ferramentas que tem, dando – ou rejeitando – a sua roupagem empregatícia generalista conforme a cabeça de cada julgador ou colegiado.
Se seguidas as tendências mundiais, e no embalo da criatividade legislativa e jurídica que desponta em outros lugares que a nós costumam servir de norte, especialmente em tempos de surgimento de novas figuras e roupagens jurídicas no direito do trabalho, é possível se vislumbrar um meio termo, uma alternativa mais flexível a longo prazo para definir a natureza deste tipo de profissional.
Por enquanto, remanesce uma figura muito arraigada e bastante nefasta em nossa Pátria: a insegurança jurídica.
Ainda assim, parecem ser bastante confiantes os rumos integrativos, que trazem a categoria do trabalho por aplicativo mais próxima da formalização e da inserção no campo das garantias sociais básicas.
Carlos Zucolotto Junior
Thiago B. Zeni Marenda
Zucolotto Sociedade de Advogados