O novo marco legal do saneamento básico

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Gilmar Cardoso

No apagar das luzes do ano passado o plenário da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei do saneamento básico (PL 4162/19, do Poder Executivo), que na prática, atualiza o marco legal do saneamento básico (Lei Federal nº 11.445/2007), sob a ótica que facilita a privatização de estatais do setor, exige licitação para a contratação desses serviços e prorroga o prazo para o fim dos lixões; o chamado novo marco legal do saneamento básico.

A ideia básica é a atração da iniciativa privada e a ampliação da área nacional de cobertura e universalização dos serviços de água e esgoto até 2033. As novas diretrizes deverão atrair mais de R$ 500 bilhões em investimentos privados e criar até 700 mil empregos no país. Para isso serão necessários cerca de R$ 50 bilhões em investimentos ao ano, sendo que hoje são investidos R$ 12 bilhões anualmente.

Agora, em sessão remota na data de 24 de junho, o Senado aprovou o texto e a matéria seguiu para a sanção ou veto presidencial, com prazo em aberto até o dia 15 de julho.

Antes de ser colocada em pauta, a matéria foi duramente criticada pelo Governo do Paraná, através da presidência da SANEPAR, que fez lobby junto aos prefeitos pedindo mobilização dos deputados e senadores contra a aprovação do projeto, que segundo a carta encaminhada aos gestores alegava que tiraria a autonomia das cidades no saneamento básico (água, esgotos, resíduos sólidos e drenagem), e o poder de decisão dos municípios, ferindo a autonomia municipal e colocando em risco a prestação de serviços para a população mais pobre.

Na prática, segundo a SANEPAR o texto extingue os contratos de programa e impõe a concessão dos serviços, impedindo que Estados e Municípios façam gestão associada de forma voluntária e alinhada ao interesse público, especialmente voltado para os sistemas deficitários e para as populações carentes.

A proposta, segundo o governo paranaense, autoriza e até estimula a privatização de empresas estaduais como a SANEPAR, numa evidente indução ao monopólio privado, o que possivelmente direcionará a atuação privada para os 20% (vinte por cento) de sistemas atrativos e relegará os outros 80% (oitenta por cento) para o orçamento direto dos Municípios, com o risco de desequilíbrio das contas públicas municipais e desatendimento da população nos locais mais pobres e onde estão os atuais déficits sanitários do nosso Estado.

O PL 4.162/2019, aprovado nas duas casas legislativas, extingue o modelo atual de contrato entre os municípios e as empresas estaduais de água e esgoto. Pelas regras em vigor, as companhias precisam obedecer critérios de prestação e tarifação, mas podem atuar sem concorrência. O novo marco transforma os contratos em vigor em concessões com a empresa privada que vier a assumir a estatal. O texto também torna obrigatória a abertura de licitação, envolvendo empresas públicas e privadas.

A proposta encaminhada para o Congresso Nacional subscrita pelo atual presidente Jair Messias Bolsonaro, encampa e é herança e filho gestado no governo Michel Temer, fruto das Medidas Provisórias 844 e 868, de 2018; que perderam a validade por não terem sido votadas no prazo legal de vigência por 60 dias,prorrogáveis por mais 60 e que por falta de consenso, não foram convertidas em lei; sendo que neste prazo perderam sua eficácia, porém conservaram as relações jurídicas constituídas e decorrentes dos atos praticados durante a sua vigência.

Por lei, a água brasileira, embora dotada de valor econômico, é um bem público. Não pode, portanto, ser privatizada. Indústrias, fazendas e outros negócios que exploram grandes volumes de água o fazem sob uma licença do governo. No Brasil, o Senado, similar à Câmara dos Deputados, convalida e facilita o caminho à privatização. O PL aprovado e prestes a ser convertido em lei, cria um “mercado de águas”, permitindo às empresas que negociem entre si essa outorga pública. Não se trata de privatização em si, mas,na prática, aumenta o controle privado sobre a água.

Os representantes de associações municipais criticam a medida, por considerá-la “privatizante”, enquanto representantes do setor produtivo a apoiam por tê-la como “liberal”. Atualmente, o saneamento é prestado majoritariamente por empresas públicas estaduais. O novo marco legal visa aumentar a concorrência. A principal mudança é a obrigatoriedade da abertura de licitação quando os Estados e municípios, responsáveis pelos serviços, contratarem o serviço de saneamento.

O texto determina a abertura de licitação, com a participação de empresas públicas e privadas, e acaba com o direito de preferência das companhias estaduais. Hoje, 94% das cidades são atendidas por estatais e apenas 6% por empresas privadas.

A proposta aprovada prevê também que o saneamento passe a ser prestado em blocos de municípios de forma regionalizada. Esse item do texto tenta responder às críticas da oposição, que alega que municípios muito pequenos poderiam ficar desassistidos já que não são viáveis financeiramente. Ao aglutinar municípios viáveis – com resultado positivo no equilíbrio de receita e despesa- e inviáveis, a operação continuaria atrativa.

O saneamento básico no Brasil constitui-se num dos maiores gargalos do país. Até hoje, quase metade da população brasileira não possui acesso à rede de esgoto. Um dos pontos principais do projeto, abre caminho para que iniciativa privada atue com mais força no setor e institui um regime de licitações para que os municípios escolham as empresas que irão prestar serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto.

Acabando, assim, com o direito de preferência pelas companhias públicas estaduais de saneamento. De um lado, apoiadores do projeto defendem que essa abertura irá trazer mais eficiência, competição e investimentos, enquanto a ala da oposição teme que a mudança da regra prejudique os municípios mais pobres – que não seriam tão atrativos. Também há um temor de que as tarifas subam sem controle e que uma insegurança jurídica seja instaurada no setor.

Ainda, de acordo com a proposta, caberá aos municípios promoverem o licenciamento ambiental das atividades, empreendimentos e serviços de saneamento básico. A lei em vigor previa que os lixões deveriam acabar em 2014. Agora, a lei determina como prazo 31 de dezembro de 2020. Esta data não vai valer para os municípios com plano intermunicipal de resíduos sólidos ou plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos.

Para esses casos, os prazos vão variar de agosto de 2021 a agosto de 2024, dependendo da localização e do tamanho do município. O marco estende os prazos da Política Nacional de Resíduos Sólidos para que municípios encerrem os lixões a céu aberto. O critério usado para a fixação é o tamanho das cidades. Os novos prazos vão de 2021, para capitais e regiões metropolitanas, até 2024, para municípios com até 50 mil habitantes.

No Estado do Paraná, criada em 23 de janeiro de 1963 a SANEPAR, Companhia pública de saneamento é responsável pela prestação de serviços de saneamento básico a 345 cidades paranaenses e a Porto União, em Santa Catarina, além de 299 distritos ou localidades de menor porte. A empresa trata 77% do esgoto doméstico. Conforme dados do Sistema Nacional do Saneamento (SNIS), a média nacional está em 42%.

A lei possibilita a entrada da iniciativa privada na prestação de serviços de saneamento e fixa o prazo de um ano para licitação obrigatória dos serviços. Nesse período, as empresas estatais de água e esgoto poderão renovar os contratos vigentes firmados com os municípios sem licitação, por até 30 anos.

Porém, novos contratos desse tipo não poderão ser firmados a partir da aprovação da lei. De acordo com o texto, os contratos de saneamento deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de, respectivamente, 99% e 90% da população com água potável e coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033.

Um dos pontos mais controversos é justamente a obrigatoriedade de licitação mesmo em cidades consideradas não lucrativas para o negócio. Segundo a Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), dos mais de 5.500 municípios brasileiros, só 500 apresentam condições de superavit nas operações de saneamento.

A principal polêmica é a viabilidade de abastecimento de locais com pouca atratividade para a iniciativa privada, acabando com o financiamento cruzado, pelo qual áreas com maior renda atendidas pela mesma empresa financiam parcialmente a expansão do serviço para cidades menores e periferias.

O tema é complexo, controverso e divide de forma antagonicamente as opiniões; reproduzindo a épica renascentista Divina Comédia de Dante Alighieri, que percorre uma viagem entre três instâncias completamente distintas: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso.

De acordo com o Ministério da Economia, por exemplo, o novo marco legal do saneamento deve alcançar mais de 700 bilhões de reais em investimentos e gerar por volta de 700 mil empregos no país nos próximos 14 anos. Agora que o governo passa por uma situação fiscal complexa e que não vai se resolver logo, a gente precisa de uma solução que traga investimentos adicionais. Esse não é um setor que dependa só de investimentos públicos. As empresas cobram tarifa. Claro que isso é atraente para empresas privadas. Elas podem prestar o serviço a preços módicos se elas forem reguladas e se o Poder Público fiscalizar a qualidade do serviço.

Para a oposição, a medida vai aumentar a tarifa para áreas mais pobres com o fim do chamado subsídio cruzado – em que o lucro em área populosa custeia o prejuízo em municípios menores. Alegam os contrários que centenas de cidades no mundo todo, como Berlim, Paris e Buenos Aires, estão revendo a privatização do saneamento. Estão arrependidas. O PL 4.162/2019 facilita a privatização de estatais de saneamento básico em todos os estados brasileiros.

Destacam que o texto aprovado contou com o apoio de empresas como Coca-Cola, Nestlé e Suez, grandes empresas que utilizam água como matéria-prima; e que o marco não contribuirá para o avanço do saneamento básico no Brasil por uma questão de interesses financeiros das empresas privadas, que tem o lucro e não o serviço como foco. Consideram a medida um retrocesso por privilegiar o setor privado de saneamento e a livre concorrência, em detrimento do acesso aos serviços públicos.

A Agência Nacional de Águas (ANA), hoje responsável por regular o acesso e o uso dos recursos hídricos, passará, segundo o novo marco legal, a desempenhar o papel de reguladora do setor de saneamento básico. Caberá à agência estabelecer padrões de qualidade, padronizar metas do setor e determinar tarifas. Hoje temos 50 agências reguladoras no setor de saneamento no país, sem uma harmonia. É confuso para o setor de infraestrutura. O investidor que vem de fora se pergunta: qual a regra de regulação que tenho que seguir? Fica difícil de entender.

A iniciativa privada aplaudiu a inclusão da concentração das diretrizes regulatórias na ANA – Agência Nacional da Água, sob a alegação de que era preciso trazer mais segurança jurídica para o setor por meio de uma estabilidade regulatória com diretrizes para todos os contratos. A possibilidade da venda das empresas estatais de saneamento, tipo a SANEPAR, por exemplo, foi outro ponto considerado muito favorável pelo setor; pois, atualmente se uma estatal da área é adquirida pela iniciativa privada ela perde os contratos. E o investidor quer previsibilidade e fluxo de caixa. Com a nova norma, os contratos permanecem.

Quando ocorrer a venda da estatal, o controlador privado deverá manter os contratos de parceria público-privada (PPP) e as subdelegações (repasse de contrato para outras empresas) em vigor. O prazo do novo contrato seguirá a lei de concessões, com até 30 anos de vigência.

Outra mudança se dará no atendimento aos pequenos municípios do interior, com poucos recursos e sem cobertura de saneamento. Hoje, o modelo funciona por meio de subsídio cruzado: as grandes cidades atendidas por uma mesma empresa ajudam a financiar a expansão do serviço nos municípios menores e mais afastados e nas periferias.

O projeto aprovado determina, para esse atendimento, que os estados componham grupos ou blocos de municípios, que contratarão os serviços de forma coletiva. Municípios de um mesmo bloco não precisam ser vizinhos. O bloco, uma autarquia intermunicipal, não poderá fazer contrato de programa com estatais nem subdelegar o serviço sem licitação. A adesão é voluntária: uma cidade pode optar por não ingressar no bloco estabelecido e licitar sozinha.

A mudança abrirá às multinacionais um mercado que movimenta 140 bilhões de reais por ano. E que jamais recebeu a devida atenção do poder público – as obras subterrâneas talvez não interessem o bastante aos políticos. O Brasil teve dois grandes ciclos de investimento em saneamento básico. Um nos anos 70, com a implantação do Planasa, e outro no fim dos anos 2000, com a aprovação da Lei do Saneamento Básico, em 2007, e as obras do PAC I e II. É pouco diante de um problema colossal. Atrai, contudo, a cobiça do setor privado. As pessoas nunca deixam de beber água, cozinhar ou ir ao banheiro. E quase sempre pagam a conta. Lucro garantido. Mas a que custo?

Resta-nos, à todos uma certeza, público ou privado, o saneamento básico universal ainda é um sonho distante.

  • Gilmar Cardoso é advogado, poeta, membro da Academia Mourãoense de Letras – AML e do Centro de Letras do Paraná.

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