O sapato velho

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Cenas do curta "Sacrossanta Confraria" de Marcus Vinícius Bonato. Mandaria, à esquerda do também saudoso Cicinho, esbanjava a sua alegria e irreverência

Rogério Bonato

Houve um tempo, que eu só possuía um par de sapatos e, ainda, me foram dados pelo meu saudoso pai. Foi um presente generoso para eu ganhar o mundo. Era um calçado tão bom, macio, com solado resistente, que suportou minhas andanças, as ávidas e as nem tanto, ultrapassando obstáculos e encruzilhadas; épocas sombrias e anuviadas. Eu olhava para os pés e perguntava: onde você está me levando amigo? Seriam as asas herdadas, de couro e borracha.

E acabei chegando em Foz do Iguaçu, em vezes encabulado de mostrar os pés, com o dedão quase saindo de um lado e o calcanhar por outro. Mas havia um orgulho e sei lá o que mais descrever naquele bem tão precioso, o par de sapatos que seo Benito comprou quando ainda era ainda jovem.

Certa ocasião a sola se rompeu, como beiços se debatendo, conforme o ritmo da minha caminhada. Eu ouvia: “não dá mais para”, “para um pouco”, “dá um tempo”. Aconteceu num domingo, caminhando até a casa de dom Aníbal Abbate Soley.

Dona Cristina, atenta à situação, revirou a sapateira da casa e apareceu com um tênis, um chinelo de couro e uma sandália da marca “Havaianas”, a única que coube em meu pé. Aceitei a sandália prometendo devolver. Enfiei o par de sapatos com dó numa sacola de plástico e pensei na dor que seria deixar aquele meu velho companheiro numa lata de lixo qualquer, porque não serviria para mais ninguém. Dona Cristina, sábia, disse: “dobre a esquina e caminhe uns cinquenta metros e verá, do lado esquerdo, a ‘Sapataria O Amigão’; nos fundos mora o sapateiro, o Mandarina. É lá que levamos os calçados aqui de casa e ele sempre nos socorreu”.

Fui desajeitado, com fé, pensando que poderia haver salvação, afinal, como eu iria trabalhar na segunda-feira?

O portão estava aberto. O cachorro latiu, apareceu o seo Oscar, o Mandarina, um paraguaio sorridente, desprendido, sério e brincalhão, e foi assim que ele analisou como faria um milagre: “amigo, não sei não, esse aqui está com aparência e cheiro de morto; não consigo ressuscitar hoje, mas pode vir buscar amanhã”.

Àquela altura da vida, nunca havia imaginado o conforto de uma sandália da marca “Havaianas”, vai ver é por isso, compro uma, antes da velha arrebentar as tiras.

Mas, e no dia seguinte, cadê o dinheiro para pagar o sapateiro? “Quando você veio, ontem, domingo, de chinelo, imaginei que só teria esse calçado, assim já me preparei para o prejuízo, pode levar”, disse o bom e amável artesão. Não acreditei que o resultado sairia tão bom. O sapato estava tal o dia que ganhei, de sola e salto novos, lustrado, cordão novo e aquele jeitão de um cão, com a língua de fora, abanando o rabo, louco para passear. Entrou no meu pé, como eu sentasse ao volante de um carro novo. Vai lá entender as dimensões que fazemos das coisas que temos e tanto gostamos?

Foi assim que acrescentei o sapateiro à lista das confiabilidades como o jornaleiro, barbeiro, e, mais tarde o alfaiate, mecânico, padeiro, açougueiro e no caso do Mandaria, o diferencial de um amigo. Na vida, nunca joguei um calçado fora, antes de seu aval.

Bom, falei do sapato. Falta lembrar o sapateiro, meu querido amigo Mandarina, nobre entendedor das carências humanas e por isso era tão solidário. Lembro dele indo de casa ao boteco, quase em frente, no fim de cada jornada; chegava de banho tomado, cabelo jogado para o lado e pedia uma taça de vinho. Nos saraus, cantava, ria abertamente e fazia questão de levar iguarias da sua cozinha. Foi um homem de muitos amigos, o Oscar Miguel Lopes, o Mandarina.

Sei dizer, e só faltava escrever, que meus dedos choram a perda de tantas pessoas queridas, uma depois da outra e isso nos causa uma sensação de solidão, a que avacalha a solitude. Que triste que é.

Alguém, dia desses, perguntou: “por que escreve experiências suas, ao lembrar os amigos?”. Respondi: é a maneira que encontro de devolver o privilégio que foi tê-los como amigos, com uma porção de lembranças felizes, verdadeiras, diretas; memoriais doces, que constroem as figuras que de alguma maneira, ajudaram a me construir. Seria bem mais fácil escrever um obituário, frio, só um relato de alguém que deixou de existir. Se as pessoas tivessem a oportunidade de homenagear os amigos por meio das lembranças, teríamos um relicário a compartilhar, no entendimento de que estamos ligados, inolvidavelmente, uns aos outros.

Os meus amigos, ao que, com eles vivi, jamais esquecerei.

* Rogério Bonato é jornalista, escritor e publicitário em Foz do Iguaçu

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