Por Nello Morlotti
Há muitos anos — não tantos quanto os que nos separam de Casablanca, mas o suficiente para que Humphrey Bogart já tivesse abandonado o cigarro — eu aprendi que política, como feijoada, só funciona mesmo quando é servida quente e com certa dose de indecência. A extremadireitice, porém, foi além: acrescentou pimenta malagueta, cápsulas de WhatsApp e um toque de delírio místico que nem Bergman seria capaz de filmar.
Dias desses, lendo sobre a “Generation Deutschland”, a juventude limpinha e penteada da AfD, me deu aquele estalo típico dos protagonistas dos Irmãos Coen antes de fazer besteira: “Mas isso aí é o Brasil com legenda em alemão.”
Veja: lá, a garotada bate palma para vídeos de boxeadores musculosos acendendo sinalizadores ao som de techno. Aqui, a coisa é mais tropical: motoqueiros de camiseta amarela acelerando sob um sol de rachar, gritando palavras claras e distintas como “INTERVENÇÃO” — que, curiosamente, não tem nada a ver com medicina estética, mas às vezes tem a ver com Botox espiritual.
A estética é a mesma, meu amigo: testosterona, suor, bandeira tremulando, e um líder dizendo que é tudo “pela liberdade”, enquanto alguém no fundo pede para “derrubar o STF como quem derruba um birimbau desafinado”.
Leia também
Na Alemanha, chamaram esse caldeirão ideológico de “patriotisches Mosaik” — um mosaico patriótico onde cada peça sabe a sua função: o partido lá no centro, a turma violenta nas bordas, e os influenciadores fazendo a ponte entre a raiva e o algoritmo. A Alemanha sempre teve vocação para organização, até na loucura.
Aqui no Brasil, mosaico não deu certo. A gente é do barroco.
Do retábulo.
Do lambuzeiro completo.
Da marmita que vem com arroz, feijão, farofa, ovo, bife e ainda um pastel que ninguém pediu.
O nosso “mosaico patriótico” tem:
- o pastor do megafone que grita como quem vende pamonha;
- o youtuber indignado que parece ter engolido uma Bíblia e cuspido uma metralhadora;
- o coronel de WhatsApp que nunca atirou um chuchu, mas fala em “resgatar a nação” como se fosse Chuck Norris em Braddock – O Super Comando;
- e a tia do zap, coitada, perdida entre fake news e receitas de pudim.
E no centro, ele: o mito, o homem, o mito de novo.
Um Bogart ao contrário: sem charme, sem chapéu e sem final feliz garantido.
Quando eu vejo a moça alemã de unhas alongadas bebendo cocktail enquanto fala em “remigração”, lembro imediatamente da influencer brasileira que defende golpe com voz de coach e filtro de borboleta. Cada povo tem o fascismo que consegue transmitir via 4G.
E aí, como se fosse uma cena cortada de Fellini, o Brasil mostra sua verdadeira natureza: um país que, diante do abismo, prefere pedir mais um chope, provar se a linguiça está boa, discutir o preço da picanha e dizer que está tudo nas mãos de Deus — enquanto o abismo nos pede CPF para emitir nota.
Se fosse um filme, seria dirigido pelos Coen, com roteiro de Nelson Rodrigues e trilha de Belchior:
“Meu amigo, o que é que você tem?
Andas bebendo? Andas chorando?
De que lado você está?”
E no fim, como em todo grande drama latino, nada se resolve.
Porque aqui, meu querido, o mosaico é móvel.
As peças mudam.
Os discursos dançam.
O delírio persiste.
E nós, espectadores comendo uma boa carbonara ou uma bistecca alla Fiorentina imaginária, só observamos — meio rindo, meio temendo — enquanto o país tenta, mais uma vez, ser original em sua própria tragédia.
Se a Alemanha tem um mosaico patriótico, o Brasil tem um mural inteiro: metade pintado por Portinari, metade por um tiozão da borracharia que aprendeu Photoshop no YouTube.
Mas uma coisa eu garanto: apesar dos absurdos, ainda prefiro o nosso caos ao rigor germânico. Pelo menos aqui, depois de discutir política, sempre tem café, bolo e um xingamento carinhoso.
E, convenhamos, nenhum extremista resiste a uma boa mesa.
Nem mesmo o patriota mais inflamado.
No fundo, todo radical vira gente quando a comida chega.
Confira notícias de Foz do Iguaçu no Facebook do Diário de Foz e no Instagram do Diário de Foz

