Era uma vez um jornal respeitável, desses que carregam no logotipo a pompa de um século de história e o peso de incontáveis editoriais sobre macroeconomia, democracia e a inevitável alta do preço do tomate.
Esse jornal, que chamaremos de Folha de São Pândego, oferecia aos leitores um espaço democrático e vibrante para que pudessem expressar suas opiniões. O nome oficial desse espaço era “Comentários”, mas os frequentadores mais assíduos o chamavam carinhosamente de Terra de Ninguém.
O projeto começou bem-intencionado. A ideia era que pessoas esclarecidas debatessem civilizadamente as grandes questões do dia. Mas a internet, essa entidade caótica que um dia prometeu democratizar o conhecimento e acabou servindo para espalhar fake news sobre a origem do coronavírus e do pão francês, tratou de dar um jeitinho.
Nos primeiros anos, o tom dos comentários ainda oscilava entre o indignado e o professoral:
– Excelente análise do articulista! Só faltou considerar o impacto geopolítico do Paraguai na alta do milho.
– Discordo veementemente! A correlação entre déficit fiscal e o aumento dos juros está mal explicada.
Até aí, tudo bem. Mas logo a comunidade começou a mudar. Surgiram os comentadores profissionais, aqueles que pareciam viver grudados no F5, prontos para digitar um “Lula ladrão” ou um “Fora, Bozo” antes mesmo de ler a matéria. Em seguida, vieram os acadêmicos do WhatsApp, que explicavam qualquer assunto com a segurança de quem assistiu um vídeo de 37 segundos no TikTok.
– Essa história de inflação é culpa dos Illuminati! Está tudo no livro secreto de Henry Kissinger, que foi traduzido por um tio meu que morava na Tailândia.
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Foi nessa época que a Folha de São Pândego começou a enfrentar um dilema shakespeariano: moderar ou não moderar? Eis a questão.
Se moderavam demais, os leitores acusavam o jornal de censura e perseguição. Se deixavam solto, os comentários viravam um pandemônio digno de um grupo de WhatsApp de família no Natal.
Alguém sugeriu que a inteligência artificial poderia ajudar na moderação, mas o algoritmo não durou nem uma semana. Foi programado para bloquear palavrões, mas acabou censurando uma discussão sobre galinhas poedeiras porque achou que o termo “ovo grande” tinha conotação imprópria.
A solução seguinte foi limitar os comentários a assinantes pagos. A lógica era simples: se alguém desembolsa R$ 49,90 por mês para ler notícias, talvez tenha mais a perder do que um perfil fake com foto de anime. No entanto, isso criou um novo problema: a arrogância dos assinantes. Agora, além de brigarem por política, começaram a discutir quem tinha mais direito de opinar.
– Você tem assinatura premium ou só o plano básico? Se for o básico, nem deveria estar aqui debatendo política monetária.
Foi então que a direção do jornal cogitou uma medida extrema: fechar os comentários. Nada de discussões inflamadas sobre preço do arroz, corrupção ou se Marco Pigossi deveria ter aceitado um papel de galã na novela das oito em vez de viver um gay rebelde no cinema. Nada. Apenas um silêncio digital ensurdecedor.
Mas, claro, os leitores não aceitaram. Protestaram na única arena possível: os próprios comentários!
– Como assim vão fechar? Isso aqui é minha terapia gratuita!
– Eu só assinei esse jornal para poder xingar o governo!
– Se tirar os comentários, onde vou reclamar da moderação dos comentários?!
E assim, em um paradoxo digno de Schopenhauer, os próprios comentários salvaram os comentários. O jornal, vencido pelo cansaço, decidiu manter o espaço aberto, mas com uma nova regra: todo mundo deveria ser educado.
Ninguém respeitou, evidentemente.
E, no fim, todos viveram felizes para sempre, brigando eternamente na Terra de Ninguém.