“Um prato de comida não resolve o problema da fome” insegurança alimentar se aprofunda na Argentina sob o governo Milei

Embora na Argentina a pobreza seja um diagnóstico permanente, com o governo de Milei a insegurança alimentar se aprofunda. Em meio à crise, as iniciativas comunitárias tornam-se símbolo de resistência e solidariedade

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Foto: Maria Vitória de Moura

Por Maria Vitória de Moura*

Juliana Herrera é uma das voluntárias mais antigas da Olla Parque Lezama, que há sete anos distribui alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade. “A Olla começou em novembro de 2018, por iniciativa de um morador”, explica. As primeiras reuniões entre os voluntários ocorreram no anfiteatro do Parque Lezama, que logo se transformou no ponto fixo de encontro, dando nome à iniciativa.

Desde então, todas as segundas-feiras os voluntários se reúnem às 18h para preparar as refeições, servidas às 21h. Os alimentos são obtidos por meio de doações, eventos beneficentes e contribuições de produtores agroecológicos, escolas e empreendimentos parceiros. “Ao longo desses sete anos, criamos vínculos com comércios do bairro e tecemos redes com organizações e instituições que também contribuem muito”, afirma Herrera.

As redes de combate à fome são históricas na Argentina. Desde a década de 1980, as cozinhas comunitárias oferecem refeições gratuitas a milhares de pessoas em todo o país. Os comedores, como são conhecidos, surgiram de organizações de bairro, igrejas e movimentos sociais que buscavam garantir alimento básico para famílias em situação de vulnerabilidade. Eram, em geral, iniciativas autogestionadas, muitas vezes sustentadas por mulheres que se reuniam para cozinhar e distribuir alimentos em suas comunidades.

A partir da década de 1990, e com ainda mais intensidade em 2001, o Estado passou a reconhecer e financiar parcialmente os comedores, sobretudo graças ao fortalecimento dos movimentos sociais e das reivindicações dos trabalhadores. Durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner, parte das cozinhas comunitárias foi incorporada a programas estatais, como o Plano Nacional de Segurança Alimentar, com o reconhecimento oficial de muitos comedores e o envio de recursos para compra de alimentos e infraestrutura.

O comedor Pedro Echagüe, por exemplo, localizado a poucas quadras da Plaza Constitución, é uma das maiores cozinhas populares de Buenos Aires. “Quando começamos, em 2017, atendíamos cerca de 300 pessoas; hoje esse número chega a 3.500”, relata Javier Soro, integrante da cooperativa de recicladores do Movimento de Trabalhadores Excluídos (MTE), responsável pela fundação do comedor.

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Foto: Maria Vitória de Moura

Austeridade e desfinanciamento

Segundo o Registro Nacional de Comedores e Merenderos Comunitários (ReNaCoM), vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Social, em 2024 existiam cerca de 35 mil comedores que atendiam aproximadamente 135 mil pessoas. Os dados também indicam que, em março do mesmo ano, 15 mil comedores haviam fechado por falta de recursos.

No início desse mesmo ano, Javier Milei eliminou as transferências federais às cozinhas comunitárias, evidenciando como a política de austeridade implementada por seu governo provocou um grave desfinanciamento que afeta diretamente a população mais vulnerável.

“São cerca de 1.200 comedores que tiveram de fechar [em Buenos Aires] por falta de financiamento. Nós somos um comedor grande e recebemos ajuda de muitos lados; muita gente doa, e por isso conseguimos continuar. Recebemos carne e frango, mas se antes cortávamos o frango em quatro partes, agora dividimos em oito, às vezes em doze”, relata Soro.

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Dados oficiais sob suspeita

Jornais nacionais e internacionais destacam a queda da inflação na Argentina e atribuem o mérito ao plano econômico do presidente neoliberal. Alguns veículos de comunicação e membros do governo, incluindo o próprio presidente, chegaram a celebrar os resultados do INDEC, quando o órgão divulgou que a taxa de pobreza no primeiro semestre de 2025 havia diminuído 21,3 pontos percentuais em comparação com o mesmo período de 2024. “A pobreza segue caindo”, publicou o site oficial do governo argentino.

Após a divulgação do relatório, especialistas do Centro de Economia Política Argentina (CEPA) e do Observatório da Dívida Social Argentina questionaram os resultados, argumentando que a aparente redução poderia estar relacionada a “fatores metodológicos”. As críticas se baseiam no fato de que o estudo apresentou aumentos de renda familiar que não aparecem em outras fontes oficiais, como registros trabalhistas e tributários, fazendo com que a renda média pareça maior e, consequentemente, o índice de pobreza pareça menor.

Além disso, o cálculo do Índice de Preços ao Consumidor (IPC), que mede a inflação mensal, se baseia em uma pesquisa de gastos domésticos realizada em 2004/2005, o que subestima os gastos reais das famílias argentinas. Organizações e movimentos populares também afirmam que o número de pessoas que recorrem aos comedores comunitários e a programas sociais segue aumentando, o que indica que os dados oficiais não refletem a realidade cotidiana.

“Não sei em que mundo vivem os que dizem que a pobreza caiu. A pobreza não diminui quando um aposentado ou uma pessoa com um filho com deficiência não consegue chegar ao fim do mês”, afirma Soro.

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Foto: Maria Vitória de Moura

Radiografia de época

Embora os dados da pesquisa apontem para uma melhora artificial nos indicadores sociais, os números seguem alarmantes. O INDEC mostra que, no primeiro semestre de 2025, 15 milhões de pessoas estavam abaixo da linha da pobreza, com 45,4% das crianças de 0 a 14 anos em situação de pobreza, das quais 11,9% eram indigentes.

“Se as pessoas não morrem de fome na rua, é justamente porque nem todos os argentinos são como Milei. Mas um prato de comida não resolve o problema da fome”, enfatiza Herrera, que viu o número de refeições distribuídas pela Olla dobrar nos últimos anos. “Muitas pessoas que chegam ao comedor não estão em situação de rua, mas precisam escolher entre pagar o aluguel, comprar remédios ou comprar comida”, acrescenta Soro.

Tanto Herrera quanto Soro destacam o aumento de aposentados e pessoas com deficiência nas filas dos comedores. Em outubro, segundo a Anses, os aposentados receberam cerca de 396 mil pesos, valor insuficiente para chegar ao fim do mês, o que os obriga a buscar outras formas de complementar a renda.

Mais uma vez, como sempre, os pobres ficam à deriva. Encontram abrigo apenas nas organizações sociais que, mesmo nos piores momentos, conseguem se reinventar para oferecer algum tipo de refúgio.

*Originalmente publicado pela UNQ Scientific News Agency


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