Dizem que um ator é um mentiroso profissional. Mas como se mente com verdade? Como se empresta um corpo para uma alma que já se foi, mas que ainda clama por voz?
Fernanda Torres sabia fazer rir. A comédia sempre foi sua zona de conforto, aquele terreno onde um gesto, um olhar ou uma pausa bem colocada podiam arrancar gargalhadas do público. Mas agora, diante do roteiro de Ainda Estou Aqui, não havia espaço para riso. O nome na capa do roteiro era Eunice Paiva, viúva de um homem que desapareceu nos porões da ditadura. A dor não tinha alívio cômico. Como atravessar essa fronteira? Como se tornar alguém que carregava um silêncio mais pesado que qualquer palavra?
Foi então que entrou em cena Helena Varvaki. Preparadora de elenco, treinadora de emoções, estrategista do invisível. Seu papel não era ensinar Fernanda a atuar, mas fazê-la sentir. Para viver Eunice, não bastava decorar falas. Era preciso ouvir os ruídos do DOI-Codi, mesmo que eles não estivessem ali.
“Escute”, disse Helena no primeiro dia. “O que você ouve do lado de fora?”
Fernanda fechou os olhos. Os sons da rua entravam como sussurros indistintos. Carros passando, passos no corredor, vozes ao longe. “Agora imagine que sua vida depende de decifrar esses sons. Você não sabe o que está acontecendo. Você não sabe se vai sair viva.”
A transformação começava ali.
Atuar é conter. Essa foi a segunda lição. Helena fez Fernanda escrever cartas para os filhos de Eunice. Cartas que jamais seriam entregues. Cartas de uma mãe que sabia que podia desaparecer a qualquer momento. “Mas não leia em voz alta”, disse Helena. “Sinta. Guarde tudo dentro de você.”
Porque Eunice Paiva não teve o direito de explodir. Quando lhe tiraram o marido, quando seu nome virou um risco em uma lista qualquer, ela se segurou. Não podia desabar, porque seus filhos precisavam de um chão firme para continuar em pé.
Mas no filme, há um momento. Uma cena. A contenção de Eunice racha, como um dique que não aguenta mais segurar o peso da água. Diante dos homens que serviram ao regime, ela, que manteve a compostura durante toda a história, finalmente cede. O silêncio se desfaz, e o grito vem de algum lugar que nem Fernanda sabia que existia dentro dela.
Quando o diretor deu o corte, o set ficou em silêncio. Ninguém respirava. A ficção havia sumido. Por um instante, Eunice não era um papel, um personagem, um nome nos créditos. Ela estava ali.
Dias depois, quando veio a indicação ao Oscar, Fernanda ligou para Helena. “Foi você”, disse, emocionada.
Helena riu. “Foi você que se permitiu.”
Eunice Paiva não pode mais contar sua história. Mas, no espelho do cinema, Fernanda a emprestou seu corpo. E Helena ensinou a sua alma a habitá-lo.